Estranhas formas de barro rasgadas pela luz
São
três da tarde. Subo a Rua Nova da Trindade e ao olhar para umas portas envidraçadas
do Convento da Trindade vislumbro umas estranhas obras de barro rasgadas pela
luz, que me atraem como se me estivessem a convidar para dois dedos de
conversa. O barro exerce sobre mim um magnetismo muito poderoso. No lugarejo de
onde vim havia um dos mais importantes ceramistas do século passado, José
Franco, e eu e os meus amigos pegávamos muitas vezes nas bicicletas para irmos
da Ada-Pera ao Sobreiro vê-lo trabalhar. Começo sempre por ser um pouco
infantil nas minhas conversas com as formas, e o meu diálogo com estas obras de
Rosa Anahory não foge à regra: procuro formas humanas, caras, olhos, bocas,
costas, seios, troncos, rabos. Fico divertido uns bons dez minutos a juntá-las
assim umas com as outras, enquanto ela assiste, um pouco perplexa, a este meu
permanecer misteriosamente em silêncio diante das suas peças. Não percebo quase
nada sobre as artes plásticas, sobre a escultura, as suas tendências, os seus
impasses; aliás não percebo nada de coisa nenhuma. Sobra-me em ingenuidade o
que me falta em conhecimento sobre a história da arte. No entanto há uma coisa
que aprendi de uma forma transversal: qualquer obra ou trabalho artístico tem
lá dentro simultaneamente um silêncio e um diálogo com o mundo que é preciso
saber procurar, encontrar, escutar. E esta conversa está a ficar cada vez mais
fascinante. Já deixei o primarismo da tentativa de humanização das formas;
descobri nelas algumas características que me entusiasmam pelo seu carácter
recorrente, permanente: uma intensificação de um movimento que, em espiral, sugere
um percurso ascensional. Essa leitura é de uma grande simplicidade e clareza: por
mais que as formas se misturem, se enlacem, se cruzem, se confrontem, elas
suportam sempre a leitura de um percurso que começa no base da peça e foge para
a sua extremidade superior e este movimento, sendo em espiral sugere um
movimento da matéria em fuga do próprio corpo. A segunda característica é a de
uma conversa embutida na própria peça. Existem frequentemente dois corpos
dentro do mesmo corpo e esses corpos estão em diálogo. Não raro estes corpos
dialogantes terminam em forma de boca, uma boca escancarada, desenhada em forma
de grito. A terceira característica que me chama a atenção nas suas peças é a
de que nestes corpos burilados dentro da mesma peça há uma presença de
sentimentos como a ternura, o encosto, o toque. Por vezes estão de costas voltadas,
em direções opostas, mas há sempre um amalgamento que sugere uma forma de
romper a solidão. Já não sendo uma faceta recorrente, encontro também nalgumas
peças uma grande plasticidade das suas formas, em contraponto com outras que
são mais densas; diria mais pesadas se a dinâmica de movimento que contêm,
quase que uma dança, não as tornasse surpreendentemente leves. Estive meia hora
a viajar entre as peças da Rosa Anahory. A tirar-lhes a estranheza inicial de
obras rasgadas pela luz e a substitui-la por um cruzamento de leituras. E
sobretudo ingénuas. Eu não sabia que aquelas formas inusitadas podiam conter
tantos diálogos comigo mesmo. Porque eu tenho a certeza de que estive ali
sentado a conversar comigo mesmo, a ver-me refletido naquelas esculturas. Como
se elas fossem uma superfície vidrada, espelhada. Descobri-lhes uma humanidade
essencial. Um movimento de matéria em fuga do seu próprio corpo. Uma tensão
entre solidão e corpo-a-corpo, dança. E quando saio para a rua olho novamente
as peças. Acrescento à impressão do meu primeiro olhar: estranhas obras de
barro rasgadas pela luz, pelo movimento, pela solidão; matéria fugindo dos
corpos.
1 comentário:
Lindo. O texto, as peças, a leitura das peças e o sentir das peças. E como ela - a Rosa que eu conheço e a Rosa que eu intuo - está nas palavras que escreveu. Incrivel. A passagem dela para o barro e do barro para as suas palavras.
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