Selecção de
textos do blogue Reservado o Direito de Admissão
23 de
Fevereiro de 2010
este é
um dos poucos lugares expressivos do meu mundo em que eu venho sem ter nada
para dizer.
a que acorro só pelo privilégio dessa ilusão quase juvenil de poder estar um pouco comigo.
e com as coisas que perdi: a solidão. o recolhimento. o espaço de dentro, o de fora.
o confronto comigo mesmo, as ideias de aperfeiçoamento
e de história.
a história como um movimento de um tempo para o outro.
não me ocorre nenhum tipo de nostalgia pelo tempo que passou. nem anseio pelo que virá. não consigo no entanto dissociar-me daquela sensação de bem estar que me dá o trabalho de lembrar. de tecer circunstâncias. características.
o facto de aqui vir tão poucas vezes, diz tudo sobre mim, sobre a minha vida, sobre o meu momento,
sobre a auto-satisfação com que me entrego às coisas.
este é, verdadeiramente, um lugar. um sitio de paredes negras. como se fosse uma caixa preta. um teatro.
apercebo-me: tenho, cada vez mais, uma estranha forma de falar. venho aqui, em silêncio, e em silêncio me vou, passado uma hora, às vezes duas, com a folha ainda em negro, um negro tão expressivo, como se tivesse ficado vazio de tanto dizer.
a que acorro só pelo privilégio dessa ilusão quase juvenil de poder estar um pouco comigo.
e com as coisas que perdi: a solidão. o recolhimento. o espaço de dentro, o de fora.
o confronto comigo mesmo, as ideias de aperfeiçoamento
e de história.
a história como um movimento de um tempo para o outro.
não me ocorre nenhum tipo de nostalgia pelo tempo que passou. nem anseio pelo que virá. não consigo no entanto dissociar-me daquela sensação de bem estar que me dá o trabalho de lembrar. de tecer circunstâncias. características.
o facto de aqui vir tão poucas vezes, diz tudo sobre mim, sobre a minha vida, sobre o meu momento,
sobre a auto-satisfação com que me entrego às coisas.
este é, verdadeiramente, um lugar. um sitio de paredes negras. como se fosse uma caixa preta. um teatro.
apercebo-me: tenho, cada vez mais, uma estranha forma de falar. venho aqui, em silêncio, e em silêncio me vou, passado uma hora, às vezes duas, com a folha ainda em negro, um negro tão expressivo, como se tivesse ficado vazio de tanto dizer.
Não
vou totalmente satisfeito com o que expressei. Mas também a verdade é que a
expressão nunca me deu felicidade.
talvez alívio.
felicidade não. eu dizia e falava e na minha louquacidade sabia que tinha de voltar no dia seguinte, e no dia depois do dia seguinte,
e mais uma vez,
até que este mal estar se dissipasse.
expressão nunca me deu felicidade.
talvez alívio.
felicidade não. eu dizia e falava e na minha louquacidade sabia que tinha de voltar no dia seguinte, e no dia depois do dia seguinte,
e mais uma vez,
até que este mal estar se dissipasse.
e de
cada vez que escrevia, que dizia, e poderia falar do que quer que fosse,
o mal estar crescia mais, mais, cada vez mais,
e tudo isto como se fosse um circulo vicioso interminável.
não me lembro de quando comecei a falar para dentro.
a sorrir diante das palavras que se dissipavam no ar como se fossem
aquelas argolas de fumo que eu fazia quando aprendi a fumar.
era como se eu olhasse a linha de horizonte e visse uma dança de letras,
de palavras,
que decerto tinham fugido de mim.
e eu cada vez mais contente comigo.
o mal estar crescia mais, mais, cada vez mais,
e tudo isto como se fosse um circulo vicioso interminável.
não me lembro de quando comecei a falar para dentro.
a sorrir diante das palavras que se dissipavam no ar como se fossem
aquelas argolas de fumo que eu fazia quando aprendi a fumar.
era como se eu olhasse a linha de horizonte e visse uma dança de letras,
de palavras,
que decerto tinham fugido de mim.
e eu cada vez mais contente comigo.
eu dantes pensava que só os imbecis eram contentes consigo mesmos.
hoje já não sei.
escrever o que não escrevo faz-me feliz.
um pouco menos solidário, eu sei.
poderia dizer que há na minha não-escrita uma solidariedade
com aqueles que sofrem com a poluição das palavras
em catadupla,
mas não seria verdadeiro nem com as palavras que não digo,
nem justo com a ferida que o não-dizer faz em mim. E
isso obrigar-me-ía a fugir do silêncio e a refugiar-me na explicação
da minha original não imbecilidade.
a verdade é que me tornei um imbecil.
deixei de me angustiar com a possibilidade de haver qualquer coisa que
eu não compreendo no meio disto tudo. é uma ironia da vida: hoje o que
verdadeiramente me apoquenta,
ao ponto de uma noite tranquila poder de repente transformar-se numa
violenta tempestade,
é a heuristíca,
a descoberta inadvertida.
As minhas noites mais tranquilas são aquelas onde
adormeço com o enigma do universo.
1 de
Agosto de 2009
Há
vezes em que me apetecia ser o Pacheco. Despachá-los com uma pachecada, isso é
que era. Quando os gajos começam a lamber-se todos uns aos outros com tiradas
de naftalina, ou vaselina, que é para o galanteio escorregar melhor pela goela,
vossa excelência é o maior brochista da praça, diz um, elogiando o amigo, o
outro, curvando a espinal medula, antes de ir defender o sacrossanto direito
dos trabalhadores, sim, porque esta canalha que se mete a fazer broches na via
pública com salamaleques de estalo são todos uns defensores da classe operária,
gostava de ser como o Pacheco, tê-los deste tamanho e mandá-los levar no cu.
Deve ser uma fantasia erótico-literária, esta. Tenho esta ideia de que se tirar
a prótese e por entre as falhas dentárias começar a praguejar, cuspindo
gafanhotos e vernáculo que dói, recupero a minha infância. E o que eu dava para
recuperar a minha infância. Há vezes em que ela me vem, em fascículos, em peças
separadas para montar. Há três dias que ando a sonhar com o Rio Cego.
O Rio
Cego não era um rio, era um pedaço de água órfã que descia desde uma espécie de
montado - uma espécie, que em Mafra não havia montados, mas a minha mãe era
alentejana e por isso aquele morro montado ficou - e vinha encalhar numa
ribeira que as mais das vezes, antes do verão, secava. Quando eu vinha da
escola era um entre muitos dos putos que desciam pela vereda do Rio Cego, que
saltavam as pedras e que poupavam assim dois quilómetros do caminho que seria
preciso fazer se fôssemos pela estrada da Paz, da Mougueta, até à A da Pera. E
já nem sei porque é que me fui me lembrar do Pacheco e o misturei com a minha
infância, com este desejo de a resgatar. Lembrei-me, já está, agora também não
vou ficar a remoer o assunto. O que eu sei é que por vezes me dá uma fúria
muito grande e só me apetece começar a dizer palavrões, a chamar todo o mundo e
ninguém de ladrões, de vigaristas, estamos em 2009, ninguém tem culpa que eu
tenha quarenta e sete anos e que tenha começado a formar a minha consciência
política com o Kennedy, com Paulo VI e com Raoul Folloreau, isto para não falar
do se bem me lembro do Vitorino Nemésio, das danças e cantares do Pedro Homem
de Melo e das conversas em família do Caetano, e que nessa altura expressões
como sonho, utopia, mundo melhor, justiça, excitarem-me mais do que, por entre
o buraco da fechadura do quarto da Domingas, a serviçal lá de casa, espreitar
as suas grandes mamas brancas descaídas que tanto me aterrorizaram a infância,
uma mulher é isto, caramba!, já não me bastava os relatos terríficos do Manecas
que nos desvendava os segredos do grande livro do kamasutra, eu achava que
nunca iria conseguir fazer aquelas piruetas com uma mulher, também pudera, uma
mulher para mim era a Domingas, ensinou-me quase tudo, a ser doce, a gostar de
ficar, a saber apreciar um fim de tarde com os meus irmãos, mas nesse aspecto
não, eu nunca lhe disse nada, não lhe podia dizer que a espiava enquanto ela se
mudava para vestir a camisa de dormir e deitar-se na cama, foi a minha dor,
cresci com um medo terrível de ser homem, de fazer dezoito anos, tinha medo de
ir para a guerra em África, eu bem os via a prestarem juramento na praça maior
em Mafra, soldadinhos de chumbo, uns voltam outros não, eu não queria fazer
dezoito anos, tinha medo, um medo de morte, um medo de morrer, eu não queria
ser um homem, tinha medo, um pânico, via as grandes mamas descaídas da Domingas
e fechava os olhos, a minha mãe apanhou-me muitas vezes a soluçar, o que é quim
paulo, não quero ser homem, mãe, tens muito tempo, filho, tens muito tempo para
aprenderes a ser homem, e eu chorava, chorava mais, acho que passei metade da
minha infância a chorar, agora quando digo que quero resgatar a minha infância
esqueço-me disso, do tempo em que passava a chorar, provavelmente eu apenas
gostaria de poder voltar à minha infância para desviver todo o tempo que passei
a lacrimejar, não sei porquê, agora deu-me também vontade de chorar, não por
alguma tristeza qualquer, deu-me para aqui, lembrei-me de que a vida é um jogo
fodido, estou rodeado por gente de merda, vidas de merda, talvezes, fregueses e
outros contumazes, era aqui que o Pacheco me safava, eu com uma pachecada punha
esta gente toda a pedir à porta da Mitra, um jogo fodido, um tipo diz isto e
aparece logo a vozinha estúpida da menina joana do nosso pátio infantil,quem diz é quem o é !, é verdade, quem diz é quem o é, a minha vida sim é
uma vida de merda, este verão é um verão de merda, vem aí umas eleições e eu
vou ter de votar em gajos de merda, e se não votar na merda daqueles gajos vou
ter de andar a lamber as latrinas que uns filhos da puta ainda piores do que os
gajos de merda que eu não quero eleger montarão para fazerem delas, das
latrinas nutridas pelo chiqueiro das suas merdas, merdinhas e merdolas, o
governo da nação, estou farto dos filhos da puta, dos cabrões de merda, dos gajos
de merda, hierarquia do horror, do horripilante, o Pacheco é que me tirava
deste dessassossego num instante, o gajo tirava os dentes e punha-se em frente
ao espelho a dar estalinhos com o cu, peidos, dizia ele, isto sou eu a
imaginar, nunca vi o Pacheco, quer dizer vi-o, por um instante, há uns anos,
tinha ido ter com o Zé Carretas que estava a ensaiar a Comunidade com o Cândido
Ferreira na Cornucópia, o gajo pagava-se com penaltys e pastelinhos de
bacalhau, ou uma merda assim, mas nessa altura o Pacheco ainda não era o
Pacheco, quer dizer, ele já o era, eu é que ainda não era este merdúnfias que
sou hoje, sabia eu lá quem era o Pacheco, o que era uma Pachecada, não sabia
nada, tal e qual como hoje, só que agora com menos estilete, estilo, exercícios
de.
7 de
Janeiro de 2009
Levanto-me
para a minha noite,
o meu estado de vígilia.
A minha inquietude.
Na escuridão da sala a luminosidade
da pantalha do computador
parece aqueles néons das
noites duvidosas da nossa adolescência tardia,
ali ao cais do sodré,
entre marinheiros, putas e
la noveau vague,
os anos oitenta,
o jamaica,
o tokio,
o shangri-la.
A minha inquietude agora é outra e
tão diferente
que se antes soubesse a que agora me chegaria
teria recusado as
históricas manhãs em que o bafo etílico se dissipava
naquele choque,
que mundo é este lá fora?,
e porque é que esse mundo lá fora entrou todo dentro da minha cabeça de marfim?,
essa overdose de sons,
gigantes moleculares de matéria dissonante,
as manhãs,
o passar entre as vendedoras de rosmaninho, de salsa e hortelã no mercado da ribeira.
A minha inquietude agora é a minha morte cívica.
Eu sei,
encho o peito de heroicidade,
mera necessidade de sobrevivência,
daqui a nada quando for lavar os dentes
antes de dormir,
preciso de reconhecer no tipo que está à frente um elo
comigo mesmo,
mas depois, quando me vou deitar,
no espaço exíguo entre o corredor da sala e
a cama,
o leito,
perco a basófia,
e é por isso que me levanto para esta noite de vígila,
onde o que me sustém na escuridão é esta ideia de
que morri civicamente.
Não vale a pena tentar fazer literatura com isso.
Morri e são também mortos os que me lêem.
Escrevo para mortos, eu
que não vivo
mais do que o sussurro deste desabafo.
Talvez, que digo?, é bem provável, que a minha morte cívica,
seja a literatura rasca em que me envolvo,
devemos continuar ainda a fazer de mortos por mais algum tempo,
outros virão,
os nossos filhos,
e tal como nós fizémos,
ou pensámos que o fizémos,
com a não vida dos nossos pais,
farão de vivos,
entregar-se-ão à ilusão da vida
com a mesma autenticidade,
com a mesma generosidade,
com que nós nos entregámos,
saberão resolver de outra forma,
com juventude,
que é sempre uma forma da poesia resolver o mundo,
a dor,
o encarceramento,
a falta de provisão de humanidade no mundo em que viverão.
Eu hoje não consigo desligar-me dos rostos daquelas crianças e mulheres
que morreram na faixa de Gaza,
eu sei,
os militantes do Hamas ocultam-se entre a população civil,
o medo torna os mais valentes acossados,
os israelitas também têm de viver ali,
eu sei tudo isso,
só não sei,
e tenho tantas saudades da minha televisão a preto e branco
onde vi na minha infância a morte dos vietcongs,
é horrível a cores aquele sangue vermelho,
tão parecido com o meu quando me corto,
quando me aleijo,
quando me dói.
o meu estado de vígilia.
A minha inquietude.
Na escuridão da sala a luminosidade
da pantalha do computador
parece aqueles néons das
noites duvidosas da nossa adolescência tardia,
ali ao cais do sodré,
entre marinheiros, putas e
la noveau vague,
os anos oitenta,
o jamaica,
o tokio,
o shangri-la.
A minha inquietude agora é outra e
tão diferente
que se antes soubesse a que agora me chegaria
teria recusado as
históricas manhãs em que o bafo etílico se dissipava
naquele choque,
que mundo é este lá fora?,
e porque é que esse mundo lá fora entrou todo dentro da minha cabeça de marfim?,
essa overdose de sons,
gigantes moleculares de matéria dissonante,
as manhãs,
o passar entre as vendedoras de rosmaninho, de salsa e hortelã no mercado da ribeira.
A minha inquietude agora é a minha morte cívica.
Eu sei,
encho o peito de heroicidade,
mera necessidade de sobrevivência,
daqui a nada quando for lavar os dentes
antes de dormir,
preciso de reconhecer no tipo que está à frente um elo
comigo mesmo,
mas depois, quando me vou deitar,
no espaço exíguo entre o corredor da sala e
a cama,
o leito,
perco a basófia,
e é por isso que me levanto para esta noite de vígila,
onde o que me sustém na escuridão é esta ideia de
que morri civicamente.
Não vale a pena tentar fazer literatura com isso.
Morri e são também mortos os que me lêem.
Escrevo para mortos, eu
que não vivo
mais do que o sussurro deste desabafo.
Talvez, que digo?, é bem provável, que a minha morte cívica,
seja a literatura rasca em que me envolvo,
devemos continuar ainda a fazer de mortos por mais algum tempo,
outros virão,
os nossos filhos,
e tal como nós fizémos,
ou pensámos que o fizémos,
com a não vida dos nossos pais,
farão de vivos,
entregar-se-ão à ilusão da vida
com a mesma autenticidade,
com a mesma generosidade,
com que nós nos entregámos,
saberão resolver de outra forma,
com juventude,
que é sempre uma forma da poesia resolver o mundo,
a dor,
o encarceramento,
a falta de provisão de humanidade no mundo em que viverão.
Eu hoje não consigo desligar-me dos rostos daquelas crianças e mulheres
que morreram na faixa de Gaza,
eu sei,
os militantes do Hamas ocultam-se entre a população civil,
o medo torna os mais valentes acossados,
os israelitas também têm de viver ali,
eu sei tudo isso,
só não sei,
e tenho tantas saudades da minha televisão a preto e branco
onde vi na minha infância a morte dos vietcongs,
é horrível a cores aquele sangue vermelho,
tão parecido com o meu quando me corto,
quando me aleijo,
quando me dói.
30 de
Dezembro de 2008
Demoro
muito tempo a morrer.
A minha inércia devagar.
As mãos.
As minhas mãos devagar demoram muito tempo
nesta inércia.
Morre-se devagar. Primeiro as mãos.
As mãos para a frente.
As mãos para a frente, o grito atrás, diante.
A minha indiferença é a minha morte e
não é outra coisa
senão o modo como vivo.
Mais um ataque em Gaza.
No Afeganistão.
Naquele jovem americano que se suicidou com um tiro de pistola russa
que herdara de seu pai
e que só ontem foi chorado em Portugal,
numa pequena sala de Lisboa,
na parte velha.
Eu estava lá, entre o grito, o choro. Não estava em Gaza.
Nem no Afeganistão.
Nem em lado nenhum.
Demoro muito tempo a aperceber-me que não é bem vida,
esta morte.
Ponho as mãos para diante.
Como se fosse um jogo de trava-trava.
As minhas mãos enxutas levantadas ao céu.
Amei aquele nascer do dia.
Lembro-me da boca aberta.
Não era espanto. Não era admiração.
Era fome.
O primeiro broche da minha vida morta,
da minha morte viva.
A minha inércia devagar.
As mãos.
As minhas mãos devagar demoram muito tempo
nesta inércia.
Morre-se devagar. Primeiro as mãos.
As mãos para a frente.
As mãos para a frente, o grito atrás, diante.
A minha indiferença é a minha morte e
não é outra coisa
senão o modo como vivo.
Mais um ataque em Gaza.
No Afeganistão.
Naquele jovem americano que se suicidou com um tiro de pistola russa
que herdara de seu pai
e que só ontem foi chorado em Portugal,
numa pequena sala de Lisboa,
na parte velha.
Eu estava lá, entre o grito, o choro. Não estava em Gaza.
Nem no Afeganistão.
Nem em lado nenhum.
Demoro muito tempo a aperceber-me que não é bem vida,
esta morte.
Ponho as mãos para diante.
Como se fosse um jogo de trava-trava.
As minhas mãos enxutas levantadas ao céu.
Amei aquele nascer do dia.
Lembro-me da boca aberta.
Não era espanto. Não era admiração.
Era fome.
O primeiro broche da minha vida morta,
da minha morte viva.
Amei aquele nascer do dia, aquele novo dia.
26 de
Junho de 2008
às
vezes acordo de noite para nascer. ponho-me sentado na cama a pensar. há
qualquer coisa em mim que se inclina para a ideia de que o pensamento redime.
tento lembrar-me. o primeiro gesto do pensamento é reconstitutivo: o que fiz em
1998? como é que foi o meu primeiro emprego? quando é que comecei a fumar? a
minha primeira noite com uma mulher. é uma história assim apresentada aos
solavancos. há qualquer coisa em mim que me diz, ou tenta dizer, que se eu
conseguir manejar o passado com alguma agilidade vou ser feliz. e quando assim
penso faço um voo picado sobre a memória e lembro-me do que posso. até onde
posso. até ao momento em que me apercebo que a única coisa que me devolve à
vida é a ideia de me poder consagrar ao extremo exercício da bondade. não ao
ser bom, que isso, é trabalho de uma vida. ao exercício da bondade enquanto
forma tentada. é um movimento de fora de mim para dentro de mim e de dentro de
mim para o que me é exterior. eu gostava de ser capaz de não perder tanto tempo
com coisas que não têm nenhuma importância para o que realmente conta: a
propagação da bondade na vida de todos os dias.
nunca
consegui aproximar-me da bondade.
o
lugar em que estive mais perto dela foi o da sua ideologia, a bondade enquanto
ideologia; ideologia da bondade, tanto no que se refere ao mundo colectivo como
no que toca ao mundo individual. eu queria ser bom. mas isso não é ainda ser
bom nem da bondade. é ser da ideologia e a ideologia, tal como a linguagem, são
menos as coisas do que as coisas são no seu estado bruto.
a
bondade não é senão isso: a operação que faz das coisas, coisas; das pessoas,
pessoas; dos bairros, bairros. e quem diz bairros diz cidades, lugares,
comunidades, países, o universo inteiro.
se me
perguntarem como é que eu gostaria de morrer, tenho a resposta na ponta da
língua: do mesmo modo como gostaria de um dia ser capaz de viver: desfazendo-me
no extremo exercício da bondade.
2 de
Março de 2007
sinto
uma dor na mão. abro-a. está vazia. é essa dor que transporto. o vazio nas
minhas mãos e as minhas mãos são os meus sentidos. o meu pensamento fez um
cerco ao meu corpo sensível. esvaziou-o de sensações.
a
guerra e a vingança: os meus sentidos ripostaram apagando a memória. agora é o
esquecimento. a inutilidade do pensamento. o optimismo acontece quando o meu
corpo se cansa. aí concentra-se unicamente no gesto de abrir a mão.
4 de
Janeiro de 2007
por onde é que se começa?, perguntou. por onde é que se
começa a desenrolar esta solidão sem fim?,
por um sorriso, ouviu.
ouvia vozes. ouvia vozes boas. e quando não eram boas, fazia-as depurar por um incansável exercício da bondade.
é um
lugar de esperança a nossa necessidade de futuro, pensou, enquanto dava duas
voltas ao quarteirão imaginário que se interpunha entre ele e a realidade.
cada um de nós devia escolher um sonho, uma promessa e depois, velá-lo. Velá-lo para sempre.cada um deveria ser o anjo da guarda do seu sonho, pensou e escreveu, naquela folha de papel almaço que andava sempre no bolso traseiro das suas jeans coçadas pelo tempo.sentia-se muito bem, sentia-se seguro quando vestia as suas jeans poídas e gastas. conseguia nelas escutar vozes antigas, outras vozes. a mãe dele ralhava sempre com o estado miserável das suas jeans.
se ela as visse agora, disse de si para si, sorrindo mais uma vez.
o sorriso abria-lhe espaço entre os maxilares, entre as bochechas, milhares de episódios vinham lá do memorial em que cada um se constitui,
havia uma ideia de leveza.
havia uma ideia de leveza completamente estafafúrdia e disparatada.
agora que todo ele era peso, massa, inércia,
desvanecia-se nele uma incrível,
primeiro imperceptível depois cada vez mais insinuante,
sensação de leveza.
as horas a passarem.
sempre as horas a passarem lhe pareceram um suplício.
as horas passam sempre devagar.
e nunca pelos trilhos certos.
perdem-se em caminhos de cabras, de poeira.
as horas parecem sempre crianças a brincar no pátio. há
sempre mais um bocadinho,
só mais um bocadinho, mãe,
assim as horas também,
nunca é tempo de acabarem o tempo, nunca voltam tranquilas e de boa vontade para casa.
respirou fundo. havia na respiração um engenho que ele nunca compreendeu, que ele sabia, nunca iria ser capaz de compreender.
estava bem assim na sua incompreensão da inspiração, do efeito que ela faz num corpo atormentado.
não queria saber.
bastava-lhe saber que era assim.
que inspirando,
absorvia essa imensa calma dos grandes lagos, dos grandes colorados deste seu pequeno mundo.
bastava-lhe saber isso, o suave balancear com que o ar rejuvenesce o corpo desavindo com o espírito que o habita.
é preciso não saber muitas coisas nem todas as coisas de uma só vez, pensou, anotou mais uma vez.
não admira que as calças de ganga estivessem cada vez mais esboroadas, frágeis.
os seus pensamentos eram como as horas.
intermináveis. antes de guardar o papel,
também ele padecendo da mesma intranquilidade,
ainda assentou,
não sigas a tua sombra.
ela seguir-te-á.
28 de
Novembro de 2006
mais uma vez ao pensar na morte, ocorreu-me que talvez vivêssemos melhor se morrêssemos mais.
deveríamos
morrer mais vezes. não digo que devêssemos morrer todos os dias,
ou até,
como se vai ver que fizeram durante anos a fio os nossos melhores poetas loucos,
ou até,
como se vai ver que fizeram durante anos a fio os nossos melhores poetas loucos,
em tomas certas, e que quase se diriam medicamente prescritas, de manhã, à tarde e à noite.
não.
digo mais vezes, mais abundantemente. não devíamos correr contra a morte, mas a
seu
favor,
procurando-a e,
enfim,
escutando-a. como agora nesta noite sem fim resolvi fechar os olhos fantasmagóricos e dançar
ao som
de o bairro do amor. deveríamos
fazê-lo. antes que a morte final, estúpida, inexpressiva,
irremediável,
colérica, violenta, vampira, esbirra, venha,
como nunca deveria vir,
interromper a loucura, o delírio, a festa.
Hoje por exemplo seria a minha vez de fazer de morto.
e
quando eu entrasse, invisível na repartição,
a
mulher que em mim nunca repara, que já nem levanta a cara diante do meu cadáver
de todos os dias,
que só
risca numa folha, que já vem com o meu nome, o meu posto e lugar de ausência,
verteria
uma lágrima sincera,
como
se fora o calafrio da sua própria morte que ela sentisse a entrar-lhe pelas
costas,
fino
recorte até à espinha, a espinal medula.
Por
sua vez a minha colega do lado,
e que
por causa da proximidade está dispensada do desprezo geral que toda a
repartição tem por mim,
o que
aliás é recíproco,
porque
nos ensinam, porque em nós medra, porque em nós vivifica,
esse
livre e espontâneo desprezo que não é senão a parte que nos é possível sentir
desse outro e enorme e inqualificável desprezar a que nos sentimos votados pela
própria vida,
por sua vez a minha colega do lado , que também almoça comigo numa cozinha malcheirosa e nauseabunda por onde o sol não entra, seria a escolhida para receber as condolências.
Um a um, todos e cada um dos enésimos funcionários desta repartição, levantar-se-iam,
lenta
e dolosamente,
segundo
o olhar atento do Esteves, o chefe,
deixando
uma flor, um bombom, na secretária da Anabela,
assim se chama a rapariga que todos os dias me diz boa tarde quando me sento na mesa forrada a plástico já meio dissolvido no tempo,
o
mesmo tempo que nos dissolve a nós,
mas
mais lentamente na maioria dos casos,
e que
no
fim se
levanta e com o mesmo ar de tédio com que já nem
sorri,diz,
até amanhã, a
mim que não sei, nunca soube, e provavelmente nunca saberei
que amanhãs serão estes sem futuro nenhum tangível.
E no dia seguinte seria outro a morrer por breves instantes.
Outro
ainda a receber os bombons, as flores, as vénias curvadas e respeitosas de
uma vida a fingir que é morte. Como outros seriam, sempre sobre a vigilância do
mesmo Esteves, o chefe, outros seriam os que se levantariam, e se curvariam
oferecendo uma lembrança, um pequeno gesto.
Eu não sei que mundos são estes que imagino nem porque imaginá-los me ferve a cabeça
dolorida
com uma morte mais uma vez,
sempre a minha.
E nem ainda morri. Nem morro. Aqui hesitante, na minha fidelidade à vida que em mim,
em cada instante, morre, no meu temor
de que
seja morte o que em mim, a cada vez, vive.
9 de
Junho de 2006
E não
é a beleza do mundo, que o mundo não é belo. O que me cansa não é nem a beleza
nem o mundo.
É a
solidão.
O que
me cansa é a tresloucada solidão que existe numa porção exacta de beleza, de
beleza do mundo.
1 de
Junho de 2006
"pedem
tanto a quem ama:pedem/o amor. Ainda pedem/ a solidão e a
loucura." [1]
Não me importo que o amor verdadeiro não exista. Até é melhor assim. Como não existe, como não pode existir verdadeiramente, se existisse seria falso.
E eu não sei o que poderia ser da nossa vida, da vida que levamos, se olhássemos em frente, no longe que o olhar desassombrado consegue ser, e descobríssemos que ele, o amor, não existe. Uma vida ao redor do amor já é uma vida tão árdua, tão ponderada entre a desistência e o suícidio que eu nem consigo sequer imaginar o que seria uma vida na declarada impossibilidade do amor.
Imaginem que teríamos de dizer aos nossos filhos: não esperem mais pela primavera. esqueçam o mês de maio. fodam agora, empranhem a terra com a vossa baba, retomem os ciclos, reproduzam-se, que o amor não existe. Alguns mais sinceros confessariam: vós mesmos fostes feitos de uma queca, de uma foda científica.
Porque não tenhamos quaisquer ilusões: o ciclo reprodutivo poderia começar muito mais cedo e não seria também por falta de abastança que ensinariamos os nossos filhos a retardarem-se na procriação. Se assim fosse seria um sinal exterior de riqueza o procriar na adolescência, ainda ao cair da pelugem imberbe. Ou na própria infância alta, logo que a baba se tornasse uma evidência liquida.
Não, a única razão porque ensinamos os nossos filhos a demorarem-se nos gestos, a tardarem nas carícias, a atrasarem-se na languidez, é porque sabemos que só a obstinação e a perseverança do homem e da mulher na ideia de um amor verdadeiro pode trazer a paz à terra.
Não é o amor verdadeiro que não existe. É a nossa vida que inexiste. Inexiste na verdade. Não tem nada a ver com o facto de pagarmos os impostos, levarmos os putos à creche, enchermos o carro do ikea, do lidl, do continente e sempre com aquele hálito vazio a travar-nos a boca, nada tem a ver com o não termos lugar no parqueamento da nossa rua, uma rua a que chamamos nossa, com o arrotarmos, com o darmos a vez ao zombi que em nós geme, sacode.
Não tem nada a ver com isso. A vida que levamos levamo-la à nossa imagem e semelhança. Pode parecer muito difícil de repente endemoninharmo-nos e dizermos que não. Ou que basta. Rasgarmos os compromissos, blindarmos a nossa vida a esse cotejar dos talvezes que ruminam os nossos dias. É, seria muito difícil. Mas não seria impossível. Ou quase tão impossível como mudarmos o tempo em nós. Somos bombas-relógio em estado de deflagração que ainda por cima, quase nunca rebentam. Ou que, como naqueles campos minados, explodem sempre tarde demais.
O amor verdadeiro não existe porque a vida que levamos é falsa. Só uma vida varrida por um vento de verdade poderia ser bafejada pela sorte de um amor verdadeiro. E digam lá, quando é que foi que a última coisa verdadeira, mas realmente verdadeira, toda a ela verdade, vos passou pelas ventas? Pelas mãos?
É por isso que insistimos no amor. A nossa insistência no amor é a demonstração matemática de que o amor existe na verdade. É na mentira que o procuramos, é certo, é na mentira que procuramos um amor que só existe na verdade.
Olho o rio ali em frente e penso, a beleza deste rio obriga-me ao amor. A solidão é estarmos completamente sozinhos à mercê da beleza do mundo. Quanto maior a beleza maior a loucura. Primeiro a beleza e a verdade e só depois o amor. O amor só existe na verdade e a verdade é a explanação cartesiana da beleza.
Não me importo que o amor verdadeiro não exista. Até é melhor assim. Como não existe, como não pode existir verdadeiramente, se existisse seria falso.
E eu não sei o que poderia ser da nossa vida, da vida que levamos, se olhássemos em frente, no longe que o olhar desassombrado consegue ser, e descobríssemos que ele, o amor, não existe. Uma vida ao redor do amor já é uma vida tão árdua, tão ponderada entre a desistência e o suícidio que eu nem consigo sequer imaginar o que seria uma vida na declarada impossibilidade do amor.
Imaginem que teríamos de dizer aos nossos filhos: não esperem mais pela primavera. esqueçam o mês de maio. fodam agora, empranhem a terra com a vossa baba, retomem os ciclos, reproduzam-se, que o amor não existe. Alguns mais sinceros confessariam: vós mesmos fostes feitos de uma queca, de uma foda científica.
Porque não tenhamos quaisquer ilusões: o ciclo reprodutivo poderia começar muito mais cedo e não seria também por falta de abastança que ensinariamos os nossos filhos a retardarem-se na procriação. Se assim fosse seria um sinal exterior de riqueza o procriar na adolescência, ainda ao cair da pelugem imberbe. Ou na própria infância alta, logo que a baba se tornasse uma evidência liquida.
Não, a única razão porque ensinamos os nossos filhos a demorarem-se nos gestos, a tardarem nas carícias, a atrasarem-se na languidez, é porque sabemos que só a obstinação e a perseverança do homem e da mulher na ideia de um amor verdadeiro pode trazer a paz à terra.
Não é o amor verdadeiro que não existe. É a nossa vida que inexiste. Inexiste na verdade. Não tem nada a ver com o facto de pagarmos os impostos, levarmos os putos à creche, enchermos o carro do ikea, do lidl, do continente e sempre com aquele hálito vazio a travar-nos a boca, nada tem a ver com o não termos lugar no parqueamento da nossa rua, uma rua a que chamamos nossa, com o arrotarmos, com o darmos a vez ao zombi que em nós geme, sacode.
Não tem nada a ver com isso. A vida que levamos levamo-la à nossa imagem e semelhança. Pode parecer muito difícil de repente endemoninharmo-nos e dizermos que não. Ou que basta. Rasgarmos os compromissos, blindarmos a nossa vida a esse cotejar dos talvezes que ruminam os nossos dias. É, seria muito difícil. Mas não seria impossível. Ou quase tão impossível como mudarmos o tempo em nós. Somos bombas-relógio em estado de deflagração que ainda por cima, quase nunca rebentam. Ou que, como naqueles campos minados, explodem sempre tarde demais.
O amor verdadeiro não existe porque a vida que levamos é falsa. Só uma vida varrida por um vento de verdade poderia ser bafejada pela sorte de um amor verdadeiro. E digam lá, quando é que foi que a última coisa verdadeira, mas realmente verdadeira, toda a ela verdade, vos passou pelas ventas? Pelas mãos?
É por isso que insistimos no amor. A nossa insistência no amor é a demonstração matemática de que o amor existe na verdade. É na mentira que o procuramos, é certo, é na mentira que procuramos um amor que só existe na verdade.
Olho o rio ali em frente e penso, a beleza deste rio obriga-me ao amor. A solidão é estarmos completamente sozinhos à mercê da beleza do mundo. Quanto maior a beleza maior a loucura. Primeiro a beleza e a verdade e só depois o amor. O amor só existe na verdade e a verdade é a explanação cartesiana da beleza.
Vou surpreender ainda e mais uma vez aqueles que ao correr do texto resistiram ao espanto: não preciso do amor para nada. Com o amor, com essa ideia do amor, não consigo sequer imaginar um cabelo teu. Preciso de ti. Preciso de ti em peças separadas para amar. É diante das tuas pernas, do teu peito, do teu sexo, da humidade do território onde me esperas que eu sou capaz de recriar a ideia do amor. Ou até, todas as ideias com que um amor é capaz de fazer representar.
Dos teus olhos. Adoro foder os olhos do meu amor. Tenho algo de incomum: tenho orgasmos múltiplos com o teu olhar dulcíssimo. É por isso que eu sei que não existe o amor verdadeiro. Existes tu. Sem ti em nenhures. O meu amor és tu.
-------------------------------------
[1]Herberto Helder, In Poesia Toda
27 de
Maio de 2006
Escreverei
ainda em Maio.
Sou uma espiga num campo de trigo.É assim que me vejo deste os primeiros tempos em que comecei a despertar para o prazer de rasgar os campos com papoilas e espigas.
Amaria
o pão se eu próprio fosse vagem que fosse triturada, moída e remoída, até
formar o alimento que devora a terra.
A
nossa terra, o nosso mundo. Há quem pense erroneamente que do trigo se faz
farinha e da farinha se faz massa e da massa se faz pão e do pão se faz
alimento e do alimento se nutre a nossa vida.
Não
poderia haver maior engodo. Basta ver que a nossa vida é um caso sério de
desnutrição para percebermos o embuste que este pensamento é.
Aliás,
é por o recusarmos assumir como condição de partida que os silogismos onde
escrevemos a verdade dos nossos dias são mancos, coxos e têm medo do mês de
Maio. O que se passa é exactamente ao contrário. Não é do pão que nos
alimentamos, que se nutre a nosa vida. É a nossa vida que é trincada pelo pão.
Tal e qual como se fosse uma maçã. O pão devora toda a nossa vida.
Todos os nossos dias. Não há na história humana retrato mais fiel do holocausto: um homem a comer pão. Atrás dele uma mulher amassa a farinha. As crias humanas atiram bolos de farinha amassados para as goelas das crias em cativeiro.
Um homem a comer pão, eis a imagem. E em torno dele outros homens. Sem pão. O homem pega num pão, glorifica-o, o homem é a imagem violentada de um glorificador de pães, e assiste-se então a um fenómeno raro: a multiplicação dos pães. Seria assim que se teria saciado o mundo na metáfora original do princípio da existência compartilhada e solidária.
Mas não é nada disso que se passa.
O que acontece, e acontece terrivelmente, numa mistura de substâncias escorregadias, viscosas, entre o nojo e o horror, o que acontece é que o que se multiplica são as imagens da violentação.
Dezenas, centenas, milhares, milhões, biliões de princípios reprodutores da violência que na vida humana é a tragédia do pão. O pão multiplica as vidas dos glorificadores de pães. Os glorificadores de pães, quando multiplicados, são fanfarrões, alarves e não sabem
que existe um mês chamado Maio.
E sem estranharem. Os honestos, dedicados, voluntariosos e abnegados servidores do pão nunca estranharam a perda. Saiu-lhes dos dias vividos o mês de Maio e foram-se embora também as espigas, as mulheres grávidas de prazer, aquela foda magnifica entre o feno, o cheiro a estrume entrelaçado com a sombra de fim de tarde.
O pão é o princípio da multiplicação da perda e da violência.
Todos os nossos dias. Não há na história humana retrato mais fiel do holocausto: um homem a comer pão. Atrás dele uma mulher amassa a farinha. As crias humanas atiram bolos de farinha amassados para as goelas das crias em cativeiro.
Um homem a comer pão, eis a imagem. E em torno dele outros homens. Sem pão. O homem pega num pão, glorifica-o, o homem é a imagem violentada de um glorificador de pães, e assiste-se então a um fenómeno raro: a multiplicação dos pães. Seria assim que se teria saciado o mundo na metáfora original do princípio da existência compartilhada e solidária.
Mas não é nada disso que se passa.
O que acontece, e acontece terrivelmente, numa mistura de substâncias escorregadias, viscosas, entre o nojo e o horror, o que acontece é que o que se multiplica são as imagens da violentação.
Dezenas, centenas, milhares, milhões, biliões de princípios reprodutores da violência que na vida humana é a tragédia do pão. O pão multiplica as vidas dos glorificadores de pães. Os glorificadores de pães, quando multiplicados, são fanfarrões, alarves e não sabem
que existe um mês chamado Maio.
E sem estranharem. Os honestos, dedicados, voluntariosos e abnegados servidores do pão nunca estranharam a perda. Saiu-lhes dos dias vividos o mês de Maio e foram-se embora também as espigas, as mulheres grávidas de prazer, aquela foda magnifica entre o feno, o cheiro a estrume entrelaçado com a sombra de fim de tarde.
O pão é o princípio da multiplicação da perda e da violência.
23 de
Março de 2006
Dou-me conta da fealdade das pessoas. E não são as pessoas,é este drama de sermos cheios de nós. Quanto mais nos esvaziámos de tudo o que é importante mais cheios de nós atravessamos as ruelas da nossa desaparição.
E se
pensas que vim aqui falar de pigmeus, das inúmeras espécies de filhos da puta,
desengana-te. Se um dia me vires a escancarar a boca para falar deles,poderás
dizer com toda a propriedade, erguendo o dedo indicador amestrado com o qual
coças os colhões de contentamento:- Olha, ali vai mais um cabrão! E eu serei
esse filhanestro que tu apontas e indicas por ter cedido a essa glória fácil e
efémera do mau linguarejar.
A
verdade é que o reconhecimento da imbecilidade alheia não retira um centímetro
àquela disponibilidade cretina com que cada nascituro vem nutrido desde que
nasce. Um filho-da-puta só deixa de ser um cabresto quando resolve atacar o seu
próprio embuste.Qualquer ser humano não completamente desfadado para a
aprendizagem sabe que é verdade o que digo.
E
também, embora seja preciso mais alguma subtileza para o realizar, uma
inteligência mediana adquire em meio quartel de vida que não vale a pena em
nenhuma situação - seja pai, irmão, marido, mulher, amigo, que tenha sido
atacado por essa doença rara entre as formigas, os aracnídeos e os percevejos,
mas pandémica entre os seres humanos, a filha-da-putice - tentar recuperar um
filho-da-puta.
A
piedade cristã é aliás uma das maiores causas de propagação desta pandemia
brutal que nos rouba os dias, um a seguir ao outro. E de repente foi a vida
toda, inteira, que se escapou entre os dedos. A única atitude a ter para evitar
o contágio é passar ao lado. Desocupar o pensamento com a filha-da-putice que
se aproxima sorrateira. Ninguém sai vivo da filha-da-putice se não for pelo
único buraco de agulha que tem saída de emergência: o escalpe do filho-da-puta
ele mesmo em que nos tornámos.
Tudo o
resto é perda de tempo. Até porque não há coisa que um filho da mãe, um
canhestro tenha mais dificuldade em reconhecer do que a sua condição de
proxeneta da vida boa que poderíamos ter tido se não nos tivéssemos consumido
na filha-da-putice. E não é dele, é mesmo do desvairio,da doença. É assim que
está determinado. O espelho do filho-da-puta é atacado por uma solidariedade
brutal. Como ele sabe que o cabresto é capaz de conspirar contra a sua própria
sombra, contra o seu próprio reflexo, faz como toda a gente: quando o filho-da-puta
passa, assobia para o lado.É por isso que um filho-da-puta pode estar um dia a
olhar-se ao espelho e em nenhum segundo verá o filho-da-puta que realmente é.
Provavelmente
até vai telefonar à mãe a perguntar se o viu na tv,na rádio, nas notícias,e a mãe,
o pai, o irmão, o amigo, qualquer um que se lhe aproxime não vai ter coragem
para lhe dizer o filho-da-puta que ele realmente é.O problema do filho da puta
é exactamente esse. Obriga-nos a um contacto tão demorado com a filha-da-putice
que deixemos de perceber que se possa viver sem ela. Tornamo-nos iguais a ela
para, paradoxalmente,lhe ficarmos imunes.
Dou-me
conta da fealdade das pessoas. E não são as pessoas, é este drama de ainda
termos de ser nós. Apercebo-me até de que aquilo que me permite reparar na
fealdade das pessoas é essa beleza originária que cada pessoa, seja ou não um
futuro cabresto, transporta. A aventura humana é maior que a nossa ideia de
humanidade. Já não me deixo driblar pelos silogismos: cada filho-da-puta pode
ser uma pessoa sem que cada pessoa tenha necessariamente de se acantonar na sua
condição de filho-da puta.
Levar-te-ía
a imaginares o Tejo. Dir-te-ia, vê um dorso liso, ligeiramente escamado,
com manchas de luz. Tu interromperes-me-ias, como fazes sempre, e perguntarias,
manchas de luz?. Manchas de luz, insistiria eu serenamente, como quem está
na posse de um segredo. E o que é que há mais?, perguntarias já meio
impaciente. Há quase tudo. Espera, vou contar-te devagar. Por exemplo,
sabes o que é um cacilheiro? Não saberias. Um cacilheiro é um pedaço de giz que
atravessa um leito unindo duas margens. Um cacilheiro é isso? Um
risco? Lá ao fundo há casas, as mesmas casas que há aqui. Imagino que são
as mesmas casas embora saiba que não são as mesmas. É que não precisam de ser
realmente as mesmas casas para que sejam as mesmas casas. São casas mesmificadas.
Neste jogo da alteridade possível, quer dizer, do fingirmos que estamos em toda
a parte, são a mesmificação do acto de habitar. E há pássaros?, perguntas,
desajustada deste meu tempo de contar. Eu sorrio, começaste a ver por ti
própria os lugares onde te levo. Um dia levar-me-ás a visitar os teus lugares
improváveis e esperarás de mim o mesmo. Há pássaros. Gaivotas, pombos, aves.
Aves batendo as asas, repenicando os ares. Tenho dentro de mim Ícaro,
sabias? Durante o tempo em que fechaste os olhos um cacilheiro saiu do Cais das
Colinas (é daí que sairam sempre os meus cacilheiros) e chegou ao outro lado, o
Cais do Gingal. Fecho os olhos para ver melhor. As pessoas saem. Saem todas mas
não saem de modo igual. Há umas que se voltam ligeiramente saudando o rio. Fazem-no
sempre. É este rio que lhes torna o dia-a-dia mais difícil, que as faz demorar,
compasso de espera entre as ligações fluviais e terrestes e mesmo assim não
conseguem pôr o pé em terra firme sem o saudar. E quantas vezes de manhã,
quando o mar está agastado e se agita em espuma e fúria lá vão eles a balançar
e enquanto balançam pensam que um dia tudo aquilo pode ir ao fundo, ao fundo de
quê?, perguntas, ao fundo do mar, respondo, desiludindo-te, querias um
bocado de metafísica agora. Não há metafísica nestes olhares. Nestes gestos. Há
cansaço. Há um devir trapalhão e misericordioso com os resistentes, quer dizer,
com os que se aguentam entre as dízimas e as promissórias. Os que morrem
devagar, pois duvidas que é a vida que definha no lugar que isto é? Tu abres os
olhos. Para não veres nada sempre é melhor teres os olhos abertos, pensas.
Eu sei os teus pensamentos. Sei ler os teus pensamentos como outros há que lêem
as mãos. Estou a morrer, dizes. E eu mais uma vez pressinto o que te vai
na alma, essa dor antiga, esse remorso de existir, essa memória truncada.
Éramos os dois crianças, brincávamos no pátio da escola, tu
disseste-me, este é o meu pipi. E mostraste-mo. O teu pipi era um risco a
giz, um traço, entre dois lados. E eu mostrei-te o meu. Enrugado, enfezado -
fazíamos sempre este jogo no Inverno, sei lá porquê - com os tomatinhos muito
pequeninos.
Eu só
me lembro quando venho a este bocado de giz entre o Cais do Gingal e o Cais das
Colinas e fecho os olhos para neste exercício meio sorumbático e necrófilo, me
lembrar de ti. Do que fazes em mim. A tua morte acompanha-me deste o dia em que
nasci. Se choro é porque choro, se rio é porque rio, mas não há dia nem hora em
que me deixes. É a tua morte, dia após dia, minuto após minuto prepara o chão
branco onde me deitarei para sempre. Eu não sei o que se passa comigo, com a
escuridão, com as trevas onde mergulho quando aqui venho mas a verdade é que eu
só vejo as águas, os pássaros, as manchas de luz, os barcos, os cacilheiros,
esses riscos de giz que traça sulcos nas águas, as próprias aves, eu só vejo
tudo isso nos primeiros momentos, nos primeiros instantes.
Depois
fecho os olhos e é contigo que me encontro. Nunca soube quem eras. Ás vezes
é-me dado tactear as formas de que te revestes e talvez seja isso ter algum
conhecimento sobre quem tu és. Eu costumava-te chamar a minha febre cósmica. A
minha tesão de infinito. Havia um morro onde eu costumava ir, no término do 44,
no Prior Velho, onde tantas e tantas vezes quase te reconheci o rosto.
Eu
escrevia nessa altura. Escrevia verdadeiramente. Não como agora faço. Com as
mãos empanturradas de nada, de coisa nenhuma, de uma vaidade, de um desejo de
agradar. Escrevia porque acreditava que se não o fizesse podia morrer. Que não
saberia viver sem as palavras. Hoje sei que não. Podemos viver sem nada. Deste
que não nos tirem o ar que respiramos, fazemos prodígios com a arte da
sobrevivência. A humana condição traça para si grandes propósitos mas a verdade
é que despojados de tudo, dignidade, liberdade, continuamos a viver.
Essa é
a maior afronta que deus nos fez. Não nos fazer reféns do sublime que em nós
tange, que em nós vibra. E tu perguntas, o que é que isso tem a ver com
este rio? Tem tudo. O rio mais triste da minha vida triste . Não sei
o que faria sem ti. Tenho medo do dia em que me morras, em que me morras
definitivamente, irreversívelmente. Em que acorde e não me lembre mais. Imagino
acordar e não me lembrar e há qualquer coisa de inimaginável, de irredutível à
imagem, de não trabalhável pelo pixel. Acordar e não me lembrar deve ser a
mesma coisa do que não acordar.
Onde é
que começa o gesto, o dia de um amnésico? E comecará em algum momento? Ou será
uma história interminável? Olhar este rio é olhar a morte do nosso mundo.
Os
barcos que ali andam são os artífices da nossa desaparição. São o fumo e o comércio, dizia o poeta.
Dizemos nós. Que nunca a voz se hesite de onde deve estar. Ao pé dos poetas. A
água ainda é azul ao longe. Ainda é água. Quantas vezes imaginei a morte súbita
deste rio, devorado pela nafta, pelo querosene? E ele, a sua imensa mole aquosa
ainda está aqui, ainda me sobreviverá. Será assim também com o mundo? O mundo
sobreviverá à minha morte, à morte do meu filho e do seu próprio filho?
Quantas
gerações teremos ainda para zombar de deus? Quero a política. Alguém mais
caridoso que se chegue à frente e que nem que seja com o olhar me indique um
lugar onde se lute por algo que valha a pena. Um guichet de uma quimera
perdida. Sou um visionário cego, com os olhos retorcidos, virados para dentro.
Ainda estou diante deste rio, porque duvidas? Estou diante deste rio mas
não sei tudo. Não sei nada. Sei que sofro. Quanto mais feliz sou, mais sofro. Do
sofrimento não se sofre só quando dele damos conta. Construímos o sofrimento
nos dias felizes, sofremo-lo nos ímpares. O facto de não me dar conta do
sofrimento de que hoje sofro mais me faz sofrer. Um dia, já sem luz, as trevas
virão pedir que me explique. Já imagino o demiurgo: "Explique-me
superiormente isto.". Espero não estar enervado nem zangado nesse dia.
Tenho uma propensão para estragar tudo nessas alturas. Já me estou a ver, levantando-me,
com aquele desprezo arrogante que me vem desde os tempos em que imitava o
Marlon Brando e o Paulo Gracindo no espelho da casa dos meus pais, já me
imagino a responder-lhe: "Explico-te é a puta que te pariu, seu cabrão de
merda! Vai-te foder."
Quem é
que o gajo pensa que eu sou? Há aqui gajos que escrevem como se quisessem
explicar superiormente isto. Eu não. O mais que consigo e isso é quando me
calo, quando me calo totalmente, e acho que em quarenta e três anos de vida só
uma vez me calei totalmente, o mais que consigo é ficar na dúvida se entendi
superiormente isto.
O
retorno à politica. O amor é o melhor discurso sobre a política. Por muito que
nos engajemos, que façamos bandeiras e que as queimemos, que façamos barricadas
disto daquilo, tudo isso não serão mais do que reocupações de mitos que já não
nos explicam.
O que
há entre nós e o mundo não é a fome, não é a desiguladade social, económica e
política, não é o petróleo, não é a água. Nem a falta que o foder faz à vida
que levamos. Tudo isso é importante. Se fodêssemos mais, se tivéssemos mais
petróleo, se houvesse mais água, se não houvesse tanta fome, se não houvesse
tanto fosso entre ricos e pobres, se a pirâmide invertida não servisse só para
escrever textos de jornais mas para explicar como se faz e distribui o mundo,
talvez nos ocupássemos com outro tipo de destruição do outro, mas não é seguro
dizer que não estaríamos a fazer isso mesmo, a destrui-lo.
Porque
o problema é esta dissidência cósmica de cada um com o universo, e tudo o resto
é jogo de penélope escondida com o rabo de fora. Hoje ainda a terra tem
recursos para todos e para muitos mais, não é isso que está em causa. O que
está em causa é que há um movimento dirigido para o infinito e em que um dia
esses recursos se esgotarão. E quando se esgotarem esta dissidência cósmica
será o discurso político dominante. Está dentro de nós. Está tão interiorizado
no nosso modo de olhar e de ver e de sentir que tivemos também de interiorizar
dentro de nós mesmos o discurso da escassez.
O
discurso da escassez é o discurso do ódio. Porque não há verdadeira escassez. É
o ódio que nos instala no medo de que não chegue à nossa vez. Os nossos
primeiros interiorizaram-no. Transmitiram-nos isso. Os nossos primeiros
antepassados, à luz do que conhecemos hoje, eram riquíssimos, poderosos, tinham
o mundo todo para eles. Mas se hoje a nossa segurança social, os nossos
sistemas fiscais, de saúde, a educação, estão construídos na base do
pressuposto terrível da escassez é porque quando isso era perfeitamente
desnecessário nos fizeram interiorizar tudo isso. O discurso da escassez é o
discurso do ódio. É o discurso da ganância. Faz tão parte do nosso modus
vivendi que nem percebemos o quanto é hipócrita à luz dos valores que apregoamos.
É por isso que eu sinto vontade de mandar levar no cu todos os gajos e gajas que
explicam superiormente isto.
Não há
nada a explicar, não há nada de superior nisto. Os nossos tetramilionésimos
avós sabiam que daqui a mil anos a Terra iria ser insuficiente para todos. Eu
digo daqui a mil anos e há muitos gajos que pegam nos canhestros que explicam
superiormente isto e dizem que não é preciso esperar tanto tempo, que esse
tempo já chegou.
Mas
não é verdade. O mundo ainda teria recursos suficientes senão nos tivéssemos
reproduzido de acordo com o discurso da escassez e do ódio. É entre nós e o
cosmos que a coisa se passa. E esse momento ainda tem muitas horas, dias, meses
e anos a esperá-lo. Nós não somos o homo sapiens sapiens. Somos o homem
ódio, o homem escassez, o homem filho da puta. Nós somos tão
modelares nesta interiorização do ódio, que negamos a nós mesmos -ouçam bem, a
nós próprios, e cada um por sua vez, eu nego-me a mim, tu negas-te a ti, ele
nega-se a si mesmo - o que de mais importante poderia ter esta vida: o
amor.
Parece
absurdo não é? Poderíamos amarmo-nos. Poderíamos até termo-nos reproduzido
por termos interiorizado em nós a ideia do amor. Alguém consegue imaginar um
mundo assim? O que seria do nosso mundo se todos os gestos da nossa vida
dissessem isso àcerca de nós próprios, gajos interiorizados por um amor
que explica superiormente isto? E se um dia nos faltasse a água, o petróleo, a
comida, o ar que respiramos, aí zangávamo-nos com deus. Mas zangávamo-nos
definitivamente. Irreversivelmente. Todos juntos.
Não há
quem me tire da cabeça esta ideia: o ódio que sentimos uns pelos os outros
é a interiorização do grande ódio que sentimos por deus, pelo nosso devir ou
destino, chamemos-lhe ou não maldição.