RESERVADO DIREITO DE ADMISSÃO




Selecção de textos do blogue Reservado o Direito de Admissão 






23 de Fevereiro de 2010
este é um dos poucos lugares expressivos do meu mundo em que eu venho sem ter nada para dizer.

a que acorro só pelo privilégio dessa ilusão quase juvenil de poder estar um pouco comigo.
e com as coisas que perdi: a solidão. o recolhimento. o espaço de dentro, o de fora.
o confronto comigo mesmo, as ideias de aperfeiçoamento
e de história.
a história como um movimento de um tempo para o outro.
não me ocorre nenhum tipo de nostalgia pelo tempo que passou. nem anseio pelo que virá. não consigo no entanto dissociar-me daquela sensação de bem estar que me dá o trabalho de lembrar. de tecer circunstâncias. características.

o facto de aqui vir tão poucas vezes, diz tudo sobre mim, sobre a minha vida, sobre o meu momento,
sobre a auto-satisfação com que me entrego às coisas.

este é, verdadeiramente, um lugar. um sitio de paredes negras. como se fosse uma caixa preta. um teatro.

apercebo-me: tenho, cada vez mais, uma estranha forma de falar. venho aqui, em silêncio, e em silêncio me vou, passado uma hora, às vezes duas, com a folha ainda em negro, um negro tão expressivo, como se tivesse ficado vazio de tanto dizer.

Não vou totalmente satisfeito com o que expressei. Mas também a verdade é que a
expressão nunca me deu felicidade.
talvez alívio.
felicidade não. eu dizia e falava e na minha louquacidade sabia que tinha de voltar no dia seguinte, e no dia depois do dia seguinte,
e mais uma vez,
até que este mal estar se dissipasse.

e de cada vez que escrevia, que dizia, e poderia falar do que quer que fosse,
o mal estar crescia mais, mais, cada vez mais,
e tudo isto como se fosse um circulo vicioso interminável.

não me lembro de quando comecei a falar para dentro.
a sorrir diante das palavras que se dissipavam no ar como se fossem
aquelas argolas de fumo que eu fazia quando aprendi a fumar.
era como se eu olhasse a linha de horizonte e visse uma dança de letras,
de palavras,
que decerto tinham fugido de mim.


e eu cada vez mais contente comigo.

eu dantes pensava que só os imbecis eram contentes consigo mesmos.
hoje já não sei.
escrever o que não escrevo faz-me feliz.
um pouco menos solidário, eu sei.
poderia dizer que há na minha não-escrita uma solidariedade
com aqueles que sofrem com a poluição das palavras
em catadupla,

mas não seria verdadeiro nem com as palavras que não digo,
nem justo com a ferida que o não-dizer faz em mim. E
isso obrigar-me-ía a fugir do silêncio e a refugiar-me na explicação
da minha original não imbecilidade.

a verdade é que me tornei um imbecil.
deixei de me angustiar com a possibilidade de haver qualquer coisa que
eu não compreendo no meio disto tudo. é uma ironia da vida: hoje o que
verdadeiramente me apoquenta,
ao ponto de uma noite tranquila poder de repente transformar-se numa
violenta tempestade,
é a heuristíca,
a descoberta inadvertida.

As minhas noites mais tranquilas são aquelas onde
adormeço com o enigma do universo.

1 de Agosto de 2009
Há vezes em que me apetecia ser o Pacheco. Despachá-los com uma pachecada, isso é que era. Quando os gajos começam a lamber-se todos uns aos outros com tiradas de naftalina, ou vaselina, que é para o galanteio escorregar melhor pela goela, vossa excelência é o maior brochista da praça, diz um, elogiando o amigo, o outro, curvando a espinal medula, antes de ir defender o sacrossanto direito dos trabalhadores, sim, porque esta canalha que se mete a fazer broches na via pública com salamaleques de estalo são todos uns defensores da classe operária, gostava de ser como o Pacheco, tê-los deste tamanho e mandá-los levar no cu. Deve ser uma fantasia erótico-literária, esta. Tenho esta ideia de que se tirar a prótese e por entre as falhas dentárias começar a praguejar, cuspindo gafanhotos e vernáculo que dói, recupero a minha infância. E o que eu dava para recuperar a minha infância. Há vezes em que ela me vem, em fascículos, em peças separadas para montar. Há três dias que ando a sonhar com o Rio Cego.
O Rio Cego não era um rio, era um pedaço de água órfã que descia desde uma espécie de montado - uma espécie, que em Mafra não havia montados, mas a minha mãe era alentejana e por isso aquele morro montado ficou - e vinha encalhar numa ribeira que as mais das vezes, antes do verão, secava. Quando eu vinha da escola era um entre muitos dos putos que desciam pela vereda do Rio Cego, que saltavam as pedras e que poupavam assim dois quilómetros do caminho que seria preciso fazer se fôssemos pela estrada da Paz, da Mougueta, até à A da Pera. E já nem sei porque é que me fui me lembrar do Pacheco e o misturei com a minha infância, com este desejo de a resgatar. Lembrei-me, já está, agora também não vou ficar a remoer o assunto. O que eu sei é que por vezes me dá uma fúria muito grande e só me apetece começar a dizer palavrões, a chamar todo o mundo e ninguém de ladrões, de vigaristas, estamos em 2009, ninguém tem culpa que eu tenha quarenta e sete anos e que tenha começado a formar a minha consciência política com o Kennedy, com Paulo VI e com Raoul Folloreau, isto para não falar do se bem me lembro do Vitorino Nemésio, das danças e cantares do Pedro Homem de Melo e das conversas em família do Caetano, e que nessa altura expressões como sonho, utopia, mundo melhor, justiça, excitarem-me mais do que, por entre o buraco da fechadura do quarto da Domingas, a serviçal lá de casa, espreitar as suas grandes mamas brancas descaídas que tanto me aterrorizaram a infância, uma mulher é isto, caramba!, já não me bastava os relatos terríficos do Manecas que nos desvendava os segredos do grande livro do kamasutra, eu achava que nunca iria conseguir fazer aquelas piruetas com uma mulher, também pudera, uma mulher para mim era a Domingas, ensinou-me quase tudo, a ser doce, a gostar de ficar, a saber apreciar um fim de tarde com os meus irmãos, mas nesse aspecto não, eu nunca lhe disse nada, não lhe podia dizer que a espiava enquanto ela se mudava para vestir a camisa de dormir e deitar-se na cama, foi a minha dor, cresci com um medo terrível de ser homem, de fazer dezoito anos, tinha medo de ir para a guerra em África, eu bem os via a prestarem juramento na praça maior em Mafra, soldadinhos de chumbo, uns voltam outros não, eu não queria fazer dezoito anos, tinha medo, um medo de morte, um medo de morrer, eu não queria ser um homem, tinha medo, um pânico, via as grandes mamas descaídas da Domingas e fechava os olhos, a minha mãe apanhou-me muitas vezes a soluçar, o que é quim paulo, não quero ser homem, mãe, tens muito tempo, filho, tens muito tempo para aprenderes a ser homem, e eu chorava, chorava mais, acho que passei metade da minha infância a chorar, agora quando digo que quero resgatar a minha infância esqueço-me disso, do tempo em que passava a chorar, provavelmente eu apenas gostaria de poder voltar à minha infância para desviver todo o tempo que passei a lacrimejar, não sei porquê, agora deu-me também vontade de chorar, não por alguma tristeza qualquer, deu-me para aqui, lembrei-me de que a vida é um jogo fodido, estou rodeado por gente de merda, vidas de merda, talvezes, fregueses e outros contumazes, era aqui que o Pacheco me safava, eu com uma pachecada punha esta gente toda a pedir à porta da Mitra, um jogo fodido, um tipo diz isto e aparece logo a vozinha estúpida da menina joana do nosso pátio infantil,quem diz é quem o é !, é verdade, quem diz é quem o é, a minha vida sim é uma vida de merda, este verão é um verão de merda, vem aí umas eleições e eu vou ter de votar em gajos de merda, e se não votar na merda daqueles gajos vou ter de andar a lamber as latrinas que uns filhos da puta ainda piores do que os gajos de merda que eu não quero eleger montarão para fazerem delas, das latrinas nutridas pelo chiqueiro das suas merdas, merdinhas e merdolas, o governo da nação, estou farto dos filhos da puta, dos cabrões de merda, dos gajos de merda, hierarquia do horror, do horripilante, o Pacheco é que me tirava deste dessassossego num instante, o gajo tirava os dentes e punha-se em frente ao espelho a dar estalinhos com o cu, peidos, dizia ele, isto sou eu a imaginar, nunca vi o Pacheco, quer dizer vi-o, por um instante, há uns anos, tinha ido ter com o Zé Carretas que estava a ensaiar a Comunidade com o Cândido Ferreira na Cornucópia, o gajo pagava-se com penaltys e pastelinhos de bacalhau, ou uma merda assim, mas nessa altura o Pacheco ainda não era o Pacheco, quer dizer, ele já o era, eu é que ainda não era este merdúnfias que sou hoje, sabia eu lá quem era o Pacheco, o que era uma Pachecada, não sabia nada, tal e qual como hoje, só que agora com menos estilete, estilo, exercícios de.

7 de Janeiro de 2009

Levanto-me para a minha noite,
o meu estado de vígilia.
A minha inquietude.
Na escuridão da sala a luminosidade
da pantalha do computador
parece aqueles néons das
noites duvidosas da nossa adolescência tardia,
ali ao cais do sodré,
entre marinheiros, putas e
la noveau vague,
os anos oitenta,
o jamaica,
o tokio,
o shangri-la.
A minha inquietude agora é outra e
tão diferente
que se antes soubesse a que agora me chegaria
teria recusado as
históricas manhãs em que o bafo etílico se dissipava
naquele choque,
que mundo é este lá fora?,
e porque é que esse mundo lá fora entrou todo dentro da minha cabeça de marfim?,
essa overdose de sons,
gigantes moleculares de matéria dissonante,
as manhãs,
o passar entre as vendedoras de rosmaninho, de salsa e hortelã no mercado da ribeira.
A minha inquietude agora é a minha morte cívica.
Eu sei,
encho o peito de heroicidade,
mera necessidade de sobrevivência,
daqui a nada quando for lavar os dentes
antes de dormir,
preciso de reconhecer no tipo que está à frente um elo
comigo mesmo,
mas depois, quando me vou deitar,
no espaço exíguo entre o corredor da sala e
a cama,
o leito,
perco a basófia,
e é por isso que me levanto para esta noite de vígila,
onde o que me sustém na escuridão é esta ideia de
que morri civicamente.
Não vale a pena tentar fazer literatura com isso.
Morri e são também mortos os que me lêem.
Escrevo para mortos, eu
que não vivo
mais do que o sussurro deste desabafo.
Talvez, que digo?, é bem provável, que a minha morte cívica,
seja a literatura rasca em que me envolvo,
devemos continuar ainda a fazer de mortos por mais algum tempo,
outros virão,
os nossos filhos,
e tal como nós fizémos,
ou pensámos que o fizémos,
com a não vida dos nossos pais,
farão de vivos,
entregar-se-ão à ilusão da vida
com a mesma autenticidade,
com a mesma generosidade,
com que nós nos entregámos,
saberão resolver de outra forma,
com juventude,
que é sempre uma forma da poesia resolver o mundo,
a dor,
o encarceramento,
a falta de provisão de humanidade no mundo em que viverão.
Eu hoje não consigo desligar-me dos rostos daquelas crianças e mulheres
que morreram na faixa de Gaza,
eu sei,
os militantes do Hamas ocultam-se entre a população civil,
o medo torna os mais valentes acossados,
os israelitas também têm de viver ali,
eu sei tudo isso,
só não sei,
e tenho tantas saudades da minha televisão a preto e branco
onde vi na minha infância a morte dos vietcongs,
é horrível a cores aquele sangue vermelho,
tão parecido com o meu quando me corto,
quando me aleijo,
quando me dói.

30 de Dezembro de 2008
Demoro muito tempo a morrer.
A minha inércia devagar.
As mãos.
As minhas mãos devagar demoram muito tempo
nesta inércia.
Morre-se devagar. Primeiro as mãos.
As mãos para a frente.
As mãos para a frente, o grito atrás, diante.
A minha indiferença é a minha morte e
não é outra coisa
senão o modo como vivo.
Mais um ataque em Gaza.
No Afeganistão.
Naquele jovem americano que se suicidou com um tiro de pistola russa
que herdara de seu pai
e que só ontem foi chorado em Portugal,
numa pequena sala de Lisboa,
na parte velha.
Eu estava lá, entre o grito, o choro. Não estava em Gaza.
Nem no Afeganistão.
Nem em lado nenhum.
Demoro muito tempo a aperceber-me que não é bem vida,
esta morte.
Ponho as mãos para diante.
Como se fosse um jogo de trava-trava.
As minhas mãos enxutas levantadas ao céu.
Amei aquele nascer do dia.
Lembro-me da boca aberta.
Não era espanto. Não era admiração.
Era fome.
O primeiro broche da minha vida morta,
da minha morte viva.

Amei aquele nascer do dia, aquele novo dia.

26 de Junho de 2008
às vezes acordo de noite para nascer. ponho-me sentado na cama a pensar. há qualquer coisa em mim que se inclina para a ideia de que o pensamento redime. tento lembrar-me. o primeiro gesto do pensamento é reconstitutivo: o que fiz em 1998? como é que foi o meu primeiro emprego? quando é que comecei a fumar? a minha primeira noite com uma mulher. é uma história assim apresentada aos solavancos. há qualquer coisa em mim que me diz, ou tenta dizer, que se eu conseguir manejar o passado com alguma agilidade vou ser feliz. e quando assim penso faço um voo picado sobre a memória e lembro-me do que posso. até onde posso. até ao momento em que me apercebo que a única coisa que me devolve à vida é a ideia de me poder consagrar ao extremo exercício da bondade. não ao ser bom, que isso, é trabalho de uma vida. ao exercício da bondade enquanto forma tentada. é um movimento de fora de mim para dentro de mim e de dentro de mim para o que me é exterior. eu gostava de ser capaz de não perder tanto tempo com coisas que não têm nenhuma importância para o que realmente conta: a propagação da bondade na vida de todos os dias.
nunca consegui aproximar-me da bondade.
o lugar em que estive mais perto dela foi o da sua ideologia, a bondade enquanto ideologia; ideologia da bondade, tanto no que se refere ao mundo colectivo como no que toca ao mundo individual. eu queria ser bom. mas isso não é ainda ser bom nem da bondade. é ser da ideologia e a ideologia, tal como a linguagem, são menos as coisas do que as coisas são no seu estado bruto.
a bondade não é senão isso: a operação que faz das coisas, coisas; das pessoas, pessoas; dos bairros, bairros. e quem diz bairros diz cidades, lugares, comunidades, países, o universo inteiro.
se me perguntarem como é que eu gostaria de morrer, tenho a resposta na ponta da língua: do mesmo modo como gostaria de um dia ser capaz de viver: desfazendo-me no extremo exercício da bondade.

2 de Março de 2007
sinto uma dor na mão. abro-a. está vazia. é essa dor que transporto. o vazio nas minhas mãos e as minhas mãos são os meus sentidos. o meu pensamento fez um cerco ao meu corpo sensível. esvaziou-o de sensações.
a guerra e a vingança: os meus sentidos ripostaram apagando a memória. agora é o esquecimento. a inutilidade do pensamento. o optimismo acontece quando o meu corpo se cansa. aí concentra-se unicamente no gesto de abrir a mão.
nessas alturas o meu mundo reconstrói-se.


4 de Janeiro de 2007
por onde é que se começa?, perguntou. por onde é que se começa a desenrolar esta solidão sem fim?,

por um sorriso, ouviu.

ouvia vozes. ouvia vozes boas. e quando não eram boas, fazia-as depurar por um incansável exercício da bondade.
é um lugar de esperança a nossa necessidade de futuro, pensou, enquanto dava duas voltas ao quarteirão imaginário que se interpunha entre ele e a realidade.

cada um de nós devia escolher um sonho, uma promessa e depois, velá-lo. Velá-lo para sempre.cada um deveria ser o anjo da guarda do seu sonho, pensou e escreveu, naquela folha de papel almaço que andava sempre no bolso traseiro das suas jeans coçadas pelo tempo.sentia-se muito bem, sentia-se seguro quando vestia as suas jeans poídas e gastas. conseguia nelas escutar vozes antigas, outras vozes. a mãe dele ralhava sempre com o estado miserável das suas jeans.

se ela as visse agora, disse de si para si, sorrindo mais uma vez.
o sorriso abria-lhe espaço entre os maxilares, entre as bochechas, milhares de episódios vinham lá do memorial em que cada um se constitui,
havia uma ideia de leveza.
havia uma ideia de leveza completamente estafafúrdia e disparatada.
agora que todo ele era peso, massa, inércia,
desvanecia-se nele uma incrível,
primeiro imperceptível depois cada vez mais insinuante,
sensação de leveza.

as horas a passarem.
sempre as horas a passarem lhe pareceram um suplício.
as horas passam sempre devagar.
e nunca pelos trilhos certos.
perdem-se em caminhos de cabras, de poeira.
as horas parecem sempre crianças a brincar no pátio.
sempre mais um bocadinho,
só mais um bocadinho, mãe
,
assim as horas também,
nunca é tempo de acabarem o tempo, nunca voltam tranquilas e de boa vontade  para casa.

respirou fundo. havia na respiração um engenho que ele nunca compreendeu, que ele sabia, nunca iria ser capaz de compreender.
estava bem assim na sua incompreensão da inspiração, do efeito que ela faz num corpo atormentado.
não queria saber.
bastava-lhe saber que era assim.
que inspirando,
absorvia essa imensa calma dos grandes lagos, dos grandes colorados deste seu pequeno mundo.
bastava-lhe saber isso, o suave balancear com que o ar rejuvenesce o corpo desavindo com o espírito que o habita.

é preciso não saber muitas coisas nem todas as coisas de uma só vez, pensou, anotou mais uma vez.

não admira que as calças de ganga estivessem cada vez mais esboroadas, frágeis.
os seus pensamentos eram como as horas.
intermináveis. antes de guardar o papel,
também ele padecendo da mesma intranquilidade,
ainda assentou,
não sigas a tua sombra.
ela seguir-te-á.


28 de Novembro de 2006

mais uma vez ao pensar na morte, ocorreu-me que talvez vivêssemos melhor se morrêssemos mais.
deveríamos morrer mais vezes. não digo que devêssemos morrer todos os dias,
ou até,
como se vai ver que fizeram durante anos a fio os nossos melhores poetas loucos,

em tomas certas, e que quase se diriam medicamente prescritas, de manhã, à tarde e à noite.
não. digo mais vezes, mais abundantemente. não devíamos correr contra a morte, mas a seu
favor, procurando-a e,

enfim,

escutando-a. como agora nesta noite sem fim resolvi fechar os olhos fantasmagóricos e dançar
ao som de o bairro do amor. deveríamos fazê-lo. antes que a morte final, estúpida, inexpressiva,
irremediável, colérica, violenta, vampira, esbirra, venha,

como nunca deveria vir,

interromper a loucura, o delírio, a festa.

Hoje por exemplo seria a minha vez de fazer de morto.
e quando eu entrasse, invisível na repartição,
a mulher que em mim nunca repara, que já nem levanta a cara diante do meu cadáver de todos os dias,
que só risca numa folha, que já vem com o meu nome, o meu posto e lugar de ausência,
verteria uma lágrima sincera,
como se fora o calafrio da sua própria morte que ela sentisse a entrar-lhe pelas costas,
fino recorte até à espinha, a espinal medula.

Por sua vez a minha colega do lado,
e que por causa da proximidade está dispensada do desprezo geral que toda a repartição tem por mim,
o que aliás é recíproco,
porque nos ensinam, porque em nós medra, porque em nós vivifica,
esse livre e espontâneo desprezo que não é senão a parte que nos é possível sentir desse outro e enorme e inqualificável desprezar a que nos sentimos votados pela própria vida,

por sua vez a minha colega do lado , que também almoça comigo numa cozinha malcheirosa e nauseabunda por onde o sol não entra, seria a escolhida para receber as condolências.


Um a um, todos e cada um dos enésimos funcionários desta repartição, levantar-se-iam,
lenta e dolosamente,
segundo o olhar atento do Esteves, o chefe,
deixando uma flor, um bombom, na secretária da Anabela,

assim se chama a rapariga que todos os dias me diz boa tarde quando me sento na mesa forrada a plástico já meio dissolvido no tempo,
o mesmo tempo que nos dissolve a nós,
mas mais lentamente na maioria dos casos,
e que no
fim se levanta e com o mesmo ar de tédio com que já nem

sorri,diz,
até amanhã, a mim que não sei, nunca soube, e provavelmente nunca saberei

que amanhãs serão estes sem futuro nenhum tangível.

E no dia seguinte seria outro a morrer por breves instantes.
Outro ainda a receber os bombons, as flores, as vénias curvadas e respeitosas de uma vida a fingir que é morte. Como outros seriam, sempre sobre a vigilância do mesmo Esteves, o chefe, outros seriam os que se levantariam, e se curvariam oferecendo uma lembrança, um pequeno gesto.


Eu não sei que mundos são estes que imagino nem porque imaginá-los me ferve a cabeça
dolorida com uma morte mais uma vez,

sempre a minha.

E nem ainda morri. Nem morro. Aqui hesitante, na minha fidelidade à vida que em mim,

em cada instante, morre, no meu temor
de que seja morte o que em mim, a cada vez, vive.


9 de Junho de 2006
A beleza do mundo cansa-me mais agora.
E não é a beleza do mundo, que o mundo não é belo. O que me cansa não é nem a beleza nem o mundo.
É a solidão.
O que me cansa é a tresloucada solidão que existe numa porção exacta de beleza, de beleza do mundo.


1 de Junho de 2006
"pedem tanto a quem ama:pedem/o amor. Ainda pedem/ a solidão e a loucura." [1]



Não me importo que o amor verdadeiro não exista. Até é melhor assim. Como não existe, como não pode existir verdadeiramente, se existisse seria falso.

E eu não sei o que poderia ser da nossa vida, da vida que levamos, se olhássemos em frente, no longe que o olhar desassombrado consegue ser, e descobríssemos que ele, o amor, não existe. Uma vida ao redor do amor já é uma vida tão árdua, tão ponderada entre a desistência e o suícidio que eu nem consigo sequer imaginar o que seria uma vida na declarada impossibilidade do amor.

Imaginem que teríamos de dizer aos nossos filhos: não esperem mais pela primavera. esqueçam o mês de maio. fodam agora, empranhem a terra com a vossa baba, retomem os ciclos, reproduzam-se, que o amor não existe. Alguns mais sinceros confessariam: vós mesmos fostes feitos de uma queca, de uma foda científica.

Porque não tenhamos quaisquer ilusões: o ciclo reprodutivo poderia começar muito mais cedo e não seria também por falta de abastança que ensinariamos os nossos filhos a retardarem-se na procriação. Se assim fosse seria um sinal exterior de riqueza o procriar na adolescência, ainda ao cair da pelugem imberbe. Ou na própria infância alta, logo que a baba se tornasse uma evidência liquida.

Não, a única razão porque ensinamos os nossos filhos a demorarem-se nos gestos, a tardarem nas carícias, a atrasarem-se na languidez, é porque sabemos que só a obstinação e a perseverança do homem e da mulher na ideia de um amor verdadeiro pode trazer a paz à terra.

Não é o amor verdadeiro que não existe. É a nossa vida que inexiste. Inexiste na verdade. Não tem nada a ver com o facto de pagarmos os impostos, levarmos os putos à creche, enchermos o carro do ikea, do lidl, do continente e sempre com aquele hálito vazio a travar-nos a boca, nada tem a ver com o não termos lugar no parqueamento da nossa rua, uma rua a que chamamos nossa, com o arrotarmos, com o darmos a vez ao zombi que em nós geme, sacode.

Não tem nada a ver com isso. A vida que levamos levamo-la à nossa imagem e semelhança. Pode parecer muito difícil de repente endemoninharmo-nos e dizermos que não. Ou que basta. Rasgarmos os compromissos, blindarmos a nossa vida a esse cotejar dos talvezes que ruminam os nossos dias. É, seria muito difícil. Mas não seria impossível. Ou quase tão impossível como mudarmos o tempo em nós. Somos bombas-relógio em estado de deflagração que ainda por cima, quase nunca rebentam. Ou que, como naqueles campos minados, explodem sempre tarde demais.

O amor verdadeiro não existe porque a vida que levamos é falsa. Só uma vida varrida por um vento de verdade poderia ser bafejada pela sorte de um amor verdadeiro. E digam lá, quando é que foi que a última coisa verdadeira, mas realmente verdadeira, toda a ela verdade, vos passou pelas ventas? Pelas mãos?

É por isso que insistimos no amor. A nossa insistência no amor é a demonstração matemática de que o amor existe na verdade. É na mentira que o procuramos, é certo, é na mentira que procuramos um amor que só existe na verdade.

Olho o rio ali em frente e penso, a beleza deste rio obriga-me ao amor. A solidão é estarmos completamente sozinhos à mercê da beleza do mundo. Quanto maior a beleza maior a loucura. Primeiro a beleza e a verdade e só depois o amor. O amor só existe na verdade e a verdade é a explanação cartesiana da beleza.

Vou surpreender ainda e mais uma vez aqueles que ao correr do texto resistiram ao espanto: não preciso do amor para nada. Com o amor, com essa ideia do amor, não consigo sequer imaginar um cabelo teu. Preciso de ti. Preciso de ti em peças separadas para amar. É diante das tuas pernas, do teu peito, do teu sexo, da humidade do território onde me esperas que eu sou capaz de recriar a ideia do amor. Ou até, todas as ideias com que um amor é capaz de fazer representar.

Dos teus olhos. Adoro foder os olhos do meu amor. Tenho algo de incomum: tenho orgasmos múltiplos com o teu olhar dulcíssimo. É por isso que eu sei que não existe o amor verdadeiro. Existes tu. Sem ti em nenhures. O meu amor és tu.

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[1]Herberto Helder, In Poesia Toda

27 de Maio de 2006

Escreverei ainda em Maio.

Sou uma espiga num campo de trigo.É assim que me vejo deste os primeiros tempos em que comecei a despertar para o prazer de rasgar os campos com papoilas e espigas.
Amaria o pão se eu próprio fosse vagem que fosse triturada, moída e remoída, até formar o alimento que devora a terra.
A nossa terra, o nosso mundo. Há quem pense erroneamente que do trigo se faz farinha e da farinha se faz massa e da massa se faz pão e do pão se faz alimento e do alimento se nutre a nossa vida.
Não poderia haver maior engodo. Basta ver que a nossa vida é um caso sério de desnutrição para percebermos o embuste que este pensamento é.
Aliás, é por o recusarmos assumir como condição de partida que os silogismos onde escrevemos a verdade dos nossos dias são mancos, coxos e têm medo do mês de Maio. O que se passa é exactamente ao contrário. Não é do pão que nos alimentamos, que se nutre a nosa vida. É a nossa vida que é trincada pelo pão. Tal e qual como se fosse uma maçã. O pão devora toda a nossa vida.

Todos os nossos dias. Não há na história humana retrato mais fiel do holocausto: um homem a comer pão. Atrás dele uma mulher amassa a farinha. As crias humanas atiram bolos de farinha amassados para as goelas das crias em cativeiro.

Um homem a comer pão, eis a imagem. E em torno dele outros homens. Sem pão. O homem pega num pão, glorifica-o, o homem é a imagem violentada de um glorificador de pães, e assiste-se então a um fenómeno raro: a multiplicação dos pães. Seria assim que se teria saciado o mundo na metáfora original do princípio da existência compartilhada e solidária.

Mas não é nada disso que se passa.

O que acontece, e acontece terrivelmente, numa mistura de substâncias escorregadias, viscosas, entre o nojo e o horror, o que acontece é que o que se multiplica são as imagens da violentação.

Dezenas, centenas, milhares, milhões, biliões de princípios reprodutores da violência que na vida humana é a tragédia do pão. O pão multiplica as vidas dos glorificadores de pães. Os glorificadores de pães, quando multiplicados, são fanfarrões, alarves e não sabem
que existe um mês chamado Maio.

E sem estranharem. Os honestos, dedicados, voluntariosos e abnegados servidores do pão nunca estranharam a perda. Saiu-lhes dos dias vividos o mês de Maio e foram-se embora também as espigas, as mulheres grávidas de prazer, aquela foda magnifica entre o feno, o cheiro a estrume entrelaçado com a sombra de fim de tarde.

O pão é o princípio da multiplicação da perda e da violência.



23 de Março de 2006


Dou-me conta da fealdade das pessoas. E não são as pessoas,é este drama de sermos cheios de nós. Quanto mais nos esvaziámos de tudo o que é importante mais cheios de nós atravessamos as ruelas da nossa desaparição.
E se pensas que vim aqui falar de pigmeus, das inúmeras espécies de filhos da puta, desengana-te. Se um dia me vires a escancarar a boca para falar deles,poderás dizer com toda a propriedade, erguendo o dedo indicador amestrado com o qual coças os colhões de contentamento:- Olha, ali vai mais um cabrão! E eu serei esse filhanestro que tu apontas e indicas por ter cedido a essa glória fácil e efémera do mau linguarejar.
A verdade é que o reconhecimento da imbecilidade alheia não retira um centímetro àquela disponibilidade cretina com que cada nascituro vem nutrido desde que nasce. Um filho-da-puta só deixa de ser um cabresto quando resolve atacar o seu próprio embuste.Qualquer ser humano não completamente desfadado para a aprendizagem sabe que é verdade o que digo.
E também, embora seja preciso mais alguma subtileza para o realizar, uma inteligência mediana adquire em meio quartel de vida que não vale a pena em nenhuma situação - seja pai, irmão, marido, mulher, amigo, que tenha sido atacado por essa doença rara entre as formigas, os aracnídeos e os percevejos, mas pandémica entre os seres humanos, a filha-da-putice - tentar recuperar um filho-da-puta.
A piedade cristã é aliás uma das maiores causas de propagação desta pandemia brutal que nos rouba os dias, um a seguir ao outro. E de repente foi a vida toda, inteira, que se escapou entre os dedos. A única atitude a ter para evitar o contágio é passar ao lado. Desocupar o pensamento com a filha-da-putice que se aproxima sorrateira. Ninguém sai vivo da filha-da-putice se não for pelo único buraco de agulha que tem saída de emergência: o escalpe do filho-da-puta ele mesmo em que nos tornámos.
Tudo o resto é perda de tempo. Até porque não há coisa que um filho da mãe, um canhestro tenha mais dificuldade em reconhecer do que a sua condição de proxeneta da vida boa que poderíamos ter tido se não nos tivéssemos consumido na filha-da-putice. E não é dele, é mesmo do desvairio,da doença. É assim que está determinado. O espelho do filho-da-puta é atacado por uma solidariedade brutal. Como ele sabe que o cabresto é capaz de conspirar contra a sua própria sombra, contra o seu próprio reflexo, faz como toda a gente: quando o filho-da-puta passa, assobia para o lado.É por isso que um filho-da-puta pode estar um dia a olhar-se ao espelho e em nenhum segundo verá o filho-da-puta que realmente é.
Provavelmente até vai telefonar à mãe a perguntar se o viu na tv,na rádio, nas notícias,e a mãe, o pai, o irmão, o amigo, qualquer um que se lhe aproxime não vai ter coragem para lhe dizer o filho-da-puta que ele realmente é.O problema do filho da puta é exactamente esse. Obriga-nos a um contacto tão demorado com a filha-da-putice que deixemos de perceber que se possa viver sem ela. Tornamo-nos iguais a ela para, paradoxalmente,lhe ficarmos imunes.
Dou-me conta da fealdade das pessoas. E não são as pessoas, é este drama de ainda termos de ser nós. Apercebo-me até de que aquilo que me permite reparar na fealdade das pessoas é essa beleza originária que cada pessoa, seja ou não um futuro cabresto, transporta. A aventura humana é maior que a nossa ideia de humanidade. Já não me deixo driblar pelos silogismos: cada filho-da-puta pode ser uma pessoa sem que cada pessoa tenha necessariamente de se acantonar na sua condição de filho-da puta.

22 de Fevereiro de 2006
Levar-te-ía a imaginares o Tejo. Dir-te-ia, vê um dorso liso, ligeiramente escamado, com manchas de luz. Tu interromperes-me-ias, como fazes sempre, e perguntarias, manchas de luz?. Manchas de luz, insistiria eu serenamente, como quem está na posse de um segredo. E o que é que há mais?, perguntarias já meio impaciente. Há quase tudo. Espera, vou contar-te devagar. Por exemplo, sabes o que é um cacilheiro? Não saberias. Um cacilheiro é um pedaço de giz que atravessa um leito unindo duas margens. Um cacilheiro é isso? Um risco? Lá ao fundo há casas, as mesmas casas que há aqui. Imagino que são as mesmas casas embora saiba que não são as mesmas. É que não precisam de ser realmente as mesmas casas para que sejam as mesmas casas. São casas mesmificadas. Neste jogo da alteridade possível, quer dizer, do fingirmos que estamos em toda a parte, são a mesmificação do acto de habitar. E há pássaros?, perguntas, desajustada deste meu tempo de contar. Eu sorrio, começaste a ver por ti própria os lugares onde te levo. Um dia levar-me-ás a visitar os teus lugares improváveis e esperarás de mim o mesmo. Há pássaros. Gaivotas, pombos, aves. Aves batendo as asas, repenicando os ares. Tenho dentro de mim Ícaro, sabias? Durante o tempo em que fechaste os olhos um cacilheiro saiu do Cais das Colinas (é daí que sairam sempre os meus cacilheiros) e chegou ao outro lado, o Cais do Gingal. Fecho os olhos para ver melhor. As pessoas saem. Saem todas mas não saem de modo igual. Há umas que se voltam ligeiramente saudando o rio. Fazem-no sempre. É este rio que lhes torna o dia-a-dia mais difícil, que as faz demorar, compasso de espera entre as ligações fluviais e terrestes e mesmo assim não conseguem pôr o pé em terra firme sem o saudar. E quantas vezes de manhã, quando o mar está agastado e se agita em espuma e fúria lá vão eles a balançar e enquanto balançam pensam que um dia tudo aquilo pode ir ao fundo, ao fundo de quê?, perguntas, ao fundo do mar, respondo, desiludindo-te, querias um bocado de metafísica agora. Não há metafísica nestes olhares. Nestes gestos. Há cansaço. Há um devir trapalhão e misericordioso com os resistentes, quer dizer, com os que se aguentam entre as dízimas e as promissórias. Os que morrem devagar, pois duvidas que é a vida que definha no lugar que isto é? Tu abres os olhos. Para não veres nada sempre é melhor teres os olhos abertos, pensas. Eu sei os teus pensamentos. Sei ler os teus pensamentos como outros há que lêem as mãos. Estou a morrer, dizes. E eu mais uma vez pressinto o que te vai na alma, essa dor antiga, esse remorso de existir, essa memória truncada. Éramos os dois crianças, brincávamos no pátio da escola, tu disseste-me, este é o meu pipi. E mostraste-mo. O teu pipi era um risco a giz, um traço, entre dois lados. E eu mostrei-te o meu. Enrugado, enfezado - fazíamos sempre este jogo no Inverno, sei lá porquê - com os tomatinhos muito pequeninos.
Eu só me lembro quando venho a este bocado de giz entre o Cais do Gingal e o Cais das Colinas e fecho os olhos para neste exercício meio sorumbático e necrófilo, me lembrar de ti. Do que fazes em mim. A tua morte acompanha-me deste o dia em que nasci. Se choro é porque choro, se rio é porque rio, mas não há dia nem hora em que me deixes. É a tua morte, dia após dia, minuto após minuto prepara o chão branco onde me deitarei para sempre. Eu não sei o que se passa comigo, com a escuridão, com as trevas onde mergulho quando aqui venho mas a verdade é que eu só vejo as águas, os pássaros, as manchas de luz, os barcos, os cacilheiros, esses riscos de giz que traça sulcos nas águas, as próprias aves, eu só vejo tudo isso nos primeiros momentos, nos primeiros instantes.
Depois fecho os olhos e é contigo que me encontro. Nunca soube quem eras. Ás vezes é-me dado tactear as formas de que te revestes e talvez seja isso ter algum conhecimento sobre quem tu és. Eu costumava-te chamar a minha febre cósmica. A minha tesão de infinito. Havia um morro onde eu costumava ir, no término do 44, no Prior Velho, onde tantas e tantas vezes quase te reconheci o rosto.
Eu escrevia nessa altura. Escrevia verdadeiramente. Não como agora faço. Com as mãos empanturradas de nada, de coisa nenhuma, de uma vaidade, de um desejo de agradar. Escrevia porque acreditava que se não o fizesse podia morrer. Que não saberia viver sem as palavras. Hoje sei que não. Podemos viver sem nada. Deste que não nos tirem o ar que respiramos, fazemos prodígios com a arte da sobrevivência. A humana condição traça para si grandes propósitos mas a verdade é que despojados de tudo, dignidade, liberdade, continuamos a viver.
Essa é a maior afronta que deus nos fez. Não nos fazer reféns do sublime que em nós tange, que em nós vibra. E tu perguntas, o que é que isso tem a ver com este rio? Tem tudo. O rio mais triste da minha vida triste . Não sei o que faria sem ti. Tenho medo do dia em que me morras, em que me morras definitivamente, irreversívelmente. Em que acorde e não me lembre mais. Imagino acordar e não me lembrar e há qualquer coisa de inimaginável, de irredutível à imagem, de não trabalhável pelo pixel. Acordar e não me lembrar deve ser a mesma coisa do que não acordar. 
Onde é que começa o gesto, o dia de um amnésico? E comecará em algum momento? Ou será uma história interminável? Olhar este rio é olhar a morte do nosso mundo.
Os barcos que ali andam são os artífices da nossa desaparição. São o fumo e o comércio, dizia o poeta. Dizemos nós. Que nunca a voz se hesite de onde deve estar. Ao pé dos poetas. A água ainda é azul ao longe. Ainda é água. Quantas vezes imaginei a morte súbita deste rio, devorado pela nafta, pelo querosene? E ele, a sua imensa mole aquosa ainda está aqui, ainda me sobreviverá. Será assim também com o mundo? O mundo sobreviverá à minha morte, à morte do meu filho e do seu próprio filho?
Quantas gerações teremos ainda para zombar de deus? Quero a política. Alguém mais caridoso que se chegue à frente e que nem que seja com o olhar me indique um lugar onde se lute por algo que valha a pena. Um guichet de uma quimera perdida. Sou um visionário cego, com os olhos retorcidos, virados para dentro. Ainda estou diante deste rio, porque duvidas? Estou diante deste rio mas não sei tudo. Não sei nada. Sei que sofro. Quanto mais feliz sou, mais sofro. Do sofrimento não se sofre só quando dele damos conta. Construímos o sofrimento nos dias felizes, sofremo-lo nos ímpares. O facto de não me dar conta do sofrimento de que hoje sofro mais me faz sofrer. Um dia, já sem luz, as trevas virão pedir que me explique. Já imagino o demiurgo: "Explique-me superiormente isto.". Espero não estar enervado nem zangado nesse dia. Tenho uma propensão para estragar tudo nessas alturas. Já me estou a ver, levantando-me, com aquele desprezo arrogante que me vem desde os tempos em que imitava o Marlon Brando e o Paulo Gracindo no espelho da casa dos meus pais, já me imagino a responder-lhe: "Explico-te é a puta que te pariu, seu cabrão de merda! Vai-te foder."
Quem é que o gajo pensa que eu sou? Há aqui gajos que escrevem como se quisessem explicar superiormente isto. Eu não. O mais que consigo e isso é quando me calo, quando me calo totalmente, e acho que em quarenta e três anos de vida só uma vez me calei totalmente, o mais que consigo é ficar na dúvida se entendi superiormente isto.
O retorno à politica. O amor é o melhor discurso sobre a política. Por muito que nos engajemos, que façamos bandeiras e que as queimemos, que façamos barricadas disto daquilo, tudo isso não serão mais do que reocupações de mitos que já não nos explicam.
O que há entre nós e o mundo não é a fome, não é a desiguladade social, económica e política, não é o petróleo, não é a água. Nem a falta que o foder faz à vida que levamos. Tudo isso é importante. Se fodêssemos mais, se tivéssemos mais petróleo, se houvesse mais água, se não houvesse tanta fome, se não houvesse tanto fosso entre ricos e pobres, se a pirâmide invertida não servisse só para escrever textos de jornais mas para explicar como se faz e distribui o mundo, talvez nos ocupássemos com outro tipo de destruição do outro, mas não é seguro dizer que não estaríamos a fazer isso mesmo, a destrui-lo.
Porque o problema é esta dissidência cósmica de cada um com o universo, e tudo o resto é jogo de penélope escondida com o rabo de fora. Hoje ainda a terra tem recursos para todos e para muitos mais, não é isso que está em causa. O que está em causa é que há um movimento dirigido para o infinito e em que um dia esses recursos se esgotarão. E quando se esgotarem esta dissidência cósmica será o discurso político dominante. Está dentro de nós. Está tão interiorizado no nosso modo de olhar e de ver e de sentir que tivemos também de interiorizar dentro de nós mesmos o discurso da escassez.
O discurso da escassez é o discurso do ódio. Porque não há verdadeira escassez. É o ódio que nos instala no medo de que não chegue à nossa vez. Os nossos primeiros interiorizaram-no. Transmitiram-nos isso. Os nossos primeiros antepassados, à luz do que conhecemos hoje, eram riquíssimos, poderosos, tinham o mundo todo para eles. Mas se hoje a nossa segurança social, os nossos sistemas fiscais, de saúde, a educação, estão construídos na base do pressuposto terrível da escassez é porque quando isso era perfeitamente desnecessário nos fizeram interiorizar tudo isso. O discurso da escassez é o discurso do ódio. É o discurso da ganância. Faz tão parte do nosso modus vivendi que nem percebemos o quanto é hipócrita à luz dos valores que apregoamos. É por isso que eu sinto vontade de mandar levar no cu todos os gajos e gajas que explicam superiormente isto.
Não há nada a explicar, não há nada de superior nisto. Os nossos tetramilionésimos avós sabiam que daqui a mil anos a Terra iria ser insuficiente para todos. Eu digo daqui a mil anos e há muitos gajos que pegam nos canhestros que explicam superiormente isto e dizem que não é preciso esperar tanto tempo, que esse tempo já chegou.
Mas não é verdade. O mundo ainda teria recursos suficientes senão nos tivéssemos reproduzido de acordo com o discurso da escassez e do ódio. É entre nós e o cosmos que a coisa se passa. E esse momento ainda tem muitas horas, dias, meses e anos a esperá-lo. Nós não somos o homo sapiens sapiens. Somos o homem ódio, o homem escassez, o homem filho da puta. Nós somos tão modelares nesta interiorização do ódio, que negamos a nós mesmos -ouçam bem, a nós próprios, e cada um por sua vez, eu nego-me a mim, tu negas-te a ti, ele nega-se a si mesmo - o que de mais importante poderia ter esta vida: o amor.
Parece absurdo não é? Poderíamos amarmo-nos. Poderíamos até termo-nos reproduzido por termos interiorizado em nós a ideia do amor. Alguém consegue imaginar um mundo assim? O que seria do nosso mundo se todos os gestos da nossa vida dissessem isso àcerca de nós próprios, gajos interiorizados por um amor que explica superiormente isto? E se um dia nos faltasse a água, o petróleo, a comida, o ar que respiramos, aí zangávamo-nos com deus. Mas zangávamo-nos definitivamente. Irreversivelmente. Todos juntos.
Não há quem me tire da cabeça esta ideia: o ódio que sentimos uns pelos os outros é a interiorização do grande ódio que sentimos por deus, pelo nosso devir ou destino, chamemos-lhe ou não maldição.