domingo, abril 25, 2021

A não reciprocidade na relação



Uma das coisas deliciosas que me tem acontecido ultimamente é a daquele homem maravilhoso em que o meu filho se tornou trazer-me uma daquelas conversas em que ficamos de dedo no ar a ver de onde sopra o infinito.

Por vezes entra-nos em casa e traz-nos perguntas a que julgávamos que a nossa condição de agnósticos nos tinham libertado. Como a, existe vida para além disto?

Uma das últimas conversas foi -a morte, sempre- sobre o facto de nós nunca nos relacionarmos directamente com uma pessoa, sim com a imagem que fazemos dela. Ou seja com um determinado objecto afectivo.

É uma mediação inevitável, é uma condição. Claro que o assunto dá pano para mangas, e não apenas entre pai e filho, no entanto não perdemos tempo a questionar está ideia, seguimos um determinado trilho, este, a daquilo que acontece quando a reciprocidade de uma relação termina.

Esta ideia já diz ao que vínhamos: para nós uma relação não termina com o fim da reciprocidade. E isto quer estejamos a falar de uma morte real, física, que estejamos a falar de uma morte simbólica.

- Com o fim da reciprocidade as pessoas deixam de existir. Todas elas. As que morreram e as que muito simplesmente decidiram sair, seja unilateral ou bilateral o entendimento sobre o fim.

- Então o que é que fica?

- Fica o outro enquanto objecto. É talvez o equivalente ao esqueleto, às ossadas de base.

Ele riu, gostou da ideia. E surpreendeu-me:

- Quando as pessoas terminam uma relação porque morrem, é mais fácil. Parece que há um consenso ético que os mortos não podem reclamar da natureza da construção objectal que os sobreviventes fazem.

- Nem mais. Já os vivos dão mais trabalho, têm uma natureza fantasmática. É por isso que é tão tortuoso esse projectar. Nos primeiros tempos é quase inevitável que eles sejam uns narcisistas de merda e elas umas grandes putas.

Fui longe demais no vernáculo, pede-me contenção.

- Mas há pessoas com quem o pai continua a falar...

- Pois há, felizmente a maioria, gerir uma casa de fantasmas amorosos seria um berbicacho. Na maior parte dos casos conseguimos construir novos objectos afectivos e fazer o upgrade emocional.

-E em relação às outras pessoas, aquelas que nunca mais querem nada a ter consigo?

- Tinha um professor de teatro que dizia: o tempo é uma ciência. O tempo nos apura, depura. É o grande escultor, como escreveu uma escritora que deves tentar ler ( é impressionante como Yourcenar saiu de moda). O mais importante é aceitares que agora que o outro simbolicamente morreu, a única coisa que resta é um objecto teu, só teu, que, por circunstâncias da tua vida, ainda necessitas para a tua sobrevivência emocional. O outro enquanto entidade psíquica está ausente. E se pensares assim, estes objectos perdem a sua dimensão fantasmática.

- Nós ainda vamos evoluir como espécie. Um dia não vamos precisar desses objectos...

Ia-lhe dizer, deus te oiça mas, lembrei-me a tempo, ele, enquanto objecto meu, não existe.

sexta-feira, julho 26, 2019

Amores em segunda mão, vendem-se

Desde o dia em que decidi morrer para o amor que a minha vida adquiriu um fascínio e um brilho que há muito não tinha. Antes, assemelhava-me em tudo a uma espécie de Hank do Californication. Claro, sem Porche, nem LA, nem álcool, nem droga e com muito menos sexo. E promiscuidade.  E menos vernáculo que dói. Mas com a mesma mentira própria, embutida, mesclada. A mentira faz parte da minha vida.
- É como uma máscara que se te colasse à pele. - disse-me Amélia, uma personagem que acabei de inventar para me sentir menos só e cujo nome roubei ao primeiro grande amor da minha vida. 
- O problema é que se arrancares a máscara, vem a tua pele agarrada.- respondeu Pat, outra personagem inventada, agora já não para fintar a solidão mas para me vingar daquela mulher que fazia amor comigo num divâ.
Tenho vozes dentro de mim. E quando não as tenho invento-as. Estou tramado. Ando aqui às voltas, como se fosse uma bicha de rabiar. 
- És um gajo honesto. - disse ela, desprezando as outras duas.
Nem me dei ao trabalho de lhe dar um nome. É uma treta, não sou nada honesto nem quero ser. Não quero ser nada. Estou farto do teatro do ser. Merda das identidades. 




segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Para sempre não existe, palerma




Acordaram-me cedo hoje, sete e um quarto da manhã. A voz doce da secretária do meu editor preferido. 

- Mr. Joyce...- Ela trata-me sempre pelo nome do meu escritor favorito, é um acordo secreto. Nem me dei ao trabalho de responder. Eu sabia que aquela voz melífula, implacável, viria de novo. - Precisamos de um texto seu sobre a eternidade.

- Sobre...

-A eternidade, Mr. Joyce...

A cabra, pensei, já não disfarçava o desprezo. Desliguei o telefone. Antes mesmo de lhe dizer, ou poder dizer, ou ter dito, a eternidade não existe, palerma.

Liguei de novo o Californication na Netflix, papei oito episódios de seguida até perceber que estava a morrer de tédio, aquele a eternidade, Mr. Joyce perseguia-me. Não pensava na eternidade desde que o Luís Gouveia Monteiro fez aquele trocadilho, a eternuridade. Na altura achara graça, até porque andava a querer romance com uma bloguer que me mandava diariamente links do blogue dele, e eu a pensar. será que também lhe manda a ele links do respirar?,  

a verdade é que nada daquilo sobreviveu na memória e permaneceria para sempre no meu arquivo morto, o meu Alzheimer deliberado, não fosse este pedido inusitado e cruel, há coisa mais terrível do que pedir para escrever sobre a eternidade a um escritor que insiste em ser chamado Mr. Joyce?

Fui buscar um whisky. Toda a gente sabe que eu não bebo álcool, bebo água das pedras, apenas água das pedras, na minha discoteca preferida servem-no com um pouco de cardamomo, hortelã, lima e uma rodela de pepino, no palato o resultado não é dos melhores, aliás para ser mais horrível juntei-lhe agora cardamomo, mas enternece-me ver o ritual da preparação desta amálgama de sabores, primeiro com uma pinça a rodear a boca do copo com um pouco de casca de lima, depois o gelo, um rodopio para a hortelã deixar cair o seu travo, e finalmente uma rodela de lima seguida da de pepino, o pepino só está ali para que eu pergunte, porquê o pepino?! e a seguir a resposta friendly, prova. logo me dirás.  Tenho uma garrafa de um wisky 12 anos, lá dentro chá de menta, como no teatro, 

a minha vida é um palco, a secretária do meu editor chama-me Joyce enquanto me pede que eu escreva um texto sobre a eternidade, porra, porra fui eu que acrescentei, tal como o cardamomo, bebo Balatines 12 anos que sabe a chá de menta, quebro a linha do texto como o faz tão bem Lobo Antunes, só ainda não sei escrever como o Dinis Machado, sem virgulas. sem rede, sem nada, só esta angústia, escrever como penélope, como se a morte espreitasse no fim do texto, o que é a eternidade, caramba?

A verdade é que entretanto já se passaram três horas, a vontade de escrever foi-se, volto à minha tristeza habitual, as minhas dores, os meus entretantos. Não hei-de viver para contar. A eternidade é isto, este Balantines 12 anos com sabor a chá de menta. Quando ela me morreu, ou melhor, enquanto ela se despedia de mim, eu disse-lhe:

- Fazes batota, Isabel. És uma menina má e fazes batota. Dizes que não tens medo de morrer mas és budista e por isso não acreditas na morte, em morrer. Tu para ti vais atravessar uma parede imaginária, não vais morrer. És uma bad girl, Isabel.

Ela ria-se. Quer dizer, sorria. As bochechas dela já não tinham carne para armar um sorriso, o ar também lhe faltava para o essencial, respirar, manter-se viva, mas eu sei, ela gostava que eu lhe chamasse bad girl. É sempre assim, as cabras gostam que lhes chamemos santas, as santas, cabras, a vida nunca será outra coisa senão este paradoxo que nos escorre entre os dedos, uma pulsão para o inenarrável, para o espanto, para o último-último poema

Todas as eternidades do mundo neste sufoco. Morri tantas vezes. Morro todos os dias. Dormir é uma forma de nos prepararmos para a morte. Como dançar. Não conheço toque e foge mais manso e cru com a morte, do que uma dança, um volteio fatal na pista. Dura o tempo de um tema. Sete minutos. O tempo de uma morna na voz doce do Calu. O meu corpo respira com o dela, nem lhe hei-de saber o nome, o meu conhecimento é outro, conheço-lhe o que ela de si própria, em si própria, é desconhecimento, mistério, fantasia, e dá-mo assim, sem rede, nos sete minutos de uma dança, ela talvez ache que por eu ser mais gingão e afoito na pista também não morro ali diante do desconhecido que sou quando bailo, mas a verdade é que também eu não saio ileso deste contact-improvisation com que à nossa maneira honramos este privilégio de matéria viva ( acrescentamos nós os humanos, privilégio de matéria em carne-viva, gostamos sempre de acrescentar, nem que seja um pouco de cardamomo).

De todas as mortes que trago no corpo há duas que me desalentaram de andar aqui a passear no mundo dos vivos. Não serve para nada esta vida. O meu pensamento já desistiu há muito do mundo. Esta frase, o meu pensamento desistiu há muito do mundo, poderia ser um titulo de um romance. O romance rasca da minha vida, entre Mafra, os Olivais, Miratejo  e Alvalade. Tal como Caeiro, não tenho filosofia, tenho sentidos. As minhas moléculas continuam vivas. Todos os dias fazem o balancete entre as que morreram e continuam a querer procurar o calor do sol para se reproduzirem e continuarem a saga. Ignoram-me. Se me ouvissem já me teriam escutado pedidos de desistência. Sou muito ansioso, por vezes, algumas vezes, tenho pressa de ir ter com os meus mortos-vivos. E não faço batota, como a Isabel. Eu já não acredito no Além. O meu material molecular despreza-me. As minhas moléculas não falam comigo e eu não falo com elas. Não posso, nunca as entenderia. O meu pensamento já morreu e o meu pensamento era a única linguagem que nos unia. 


De todas as mortes que trago no corpo há duas que me desalentaram de andar aqui a passear no mundo dos vivos, repito. Dois suicídios. Dois suicídios de dois actores. Um actor e uma actriz. O Pedro e a Maria. Uma pendurou-se num cinto, o outro atirou-se de um quarto andar da sala de atendimento de um hospital público. E ainda dizem que os actores são falsos, caralho.

- Puseste-me a chorar, filho da puta! - disse de mim para mim, eu amava-os, conversa dura entre o narrador e o personagem. Detesto os escritores narcísicos. Colocam-se sempre na pele dos personagens principais. Há uma eternidade que me salva sempre. Vejo a Zé, a Cláudia e o César, são os meus heróis, vejo-os a brindarem junto de um glaciar na Patagónia Chilena, morreram num voo picado sobre o gelo cortante e frio, eram jovens, tinham trinta anos e pouco, carreiras de sucesso nos jornalismo,  não hesitaram, deram a vida por um instante, um olhar, e é por causa disso que te digo,

tens a certeza que ainda queres que te fale da eternidade, palerma?

  













sexta-feira, maio 30, 2014

MISTICISMO


No outro dia, a propósito de alguma coisa, disseram-me que eu era místico. Gostava de ser. Místico faz uma rima engraçada com cístico, com rístico, com fomístico. Até com calaregístico. Tudo coisas que eu nem sei se existem mas que, a existirem, inundariam a minha vida de uma espiritualidade incandescente. Não só não sou místico como deixei de ter fé. Em deus, nos homens, nas mulheres, nos meninos e até nos pepinos. Se eu fosse mulher diria que se foi a fé com as primeiras águas. Talvez não haja um momento tão propício para nos desapegarmos do deus remanescente que em nós insiste do que o culminar da gestação. Como não tenho desses fenómenos marsupiais invento para mim um outro marco: deixei de acreditar mais ao menos na mesma altura em que comecei a fxder. Não me devolveu isso a crença na existência divina mas pelo menos aproximou-me longitudinalmente do demónio. O que não deixou de ser de alguma forma um reencontro possível com o além.

LOU CURA

 

Há um momento em que entras pela loucura de uma forma irreversível. 

Tocado pela insuportável beleza do mundo 
refugias-te nela como um sem nome, 
um sem tecto, um sem nada. 

É nesse momento que te apercebes que estás, finalmente, curado.

segunda-feira, maio 12, 2014

Género isto, tás a ver?

Ela já tinha sido uma predadora, disse-lhe. Todas as quintas-feiras, como se fosse domingo, vestia-se a preceito, da alma aos pés, não para orar, para caçar. Quando ele a ouviu pela primeira vez falar disto já a amava e por isso não podia voltar atrás, simular o clássico, "desculpe é engano!" e pirar-se à procura do cheiro das mulheres púberes que procurava todas as noites no dancing. Das mulheres em flor ou das mulheres que se disfarçavam de mulheres púberes porque sabiam que ele procurava desesperadamente uma ilusão que não o obrigasse a confrontar-se com a sua angústia de macho. Ficou por isso apenas a olhar a sua pila a minguar, esperando que o medo lhe passasse um dia. Olhava as gajas predadoras como mirava as concubinas, de soslaio, imaginando fantasias eróticas de preferência com contorcionismo erótico-pornográfico. Ele não era um predador, nunca fora. Na discoteca distanciava-se dos outros predadores que olhavam para as mulheres como se elas fossem um saco indistinto de mamas, rabos, coxas e bocas deglutindo falos. "-Tu tens é mania que és diferente", diziam-lhe. E tinha. Tinha a mania de era um gajo sensível, delicado. Ele não era um predador. Era um gajo. Apenas um gajo. E os gajos gostam de f.. Se os gajos não gostassem de f. não eram gajos, desculpava-se perante a testosterona proeminente. Eram outra coisa. Homens com mamas, mulheres com barba, sabia lá. Só anos mais tarde, muitas mulheres depois, media o tempo da sua vida pelas mulheres que já se tinham deixado cativar por ele,- nem que fosse pelo instante do sopro - e não era por colecionismo, era porque era o único tempo em que ele tinha a sensação de ter existido fora do cordão que o ligava à mãe primeva, só muitas mulheres mais tarde é que se apercebeu que ela não era nem nunca tinha sido uma predadora. Apenas uma mulher que como ele também gostava e precisava de f. . Por mais que nos choquem as imagens exteriores, são as interiores, são as imagens interiores o último reduto da nossa concepção miserabilista do gênero.

domingo, maio 04, 2014

A minha mãe é onde o amor em mim começa



Ao longo da vida fui ganhando a percepção muito clara de que se queres conhecer a ferida de alguém tens de a ver conversar com a sua mãe ou o seu pai, um ou o outro. No meu caso é a minha mãe. Quase não consigo conversar com ela. Fui o segundo filho e na minha cabeça edipiana cresceram nós, atilhos, apertos, cujo desfazer é coisa para uma vida inteira de intenso porfiar. Muitas vezes quando me quero acolher na minha árvore escondo o amor que lhe tenho atrás da admiração intelectual pelo meu pai. O meu pai embora fosse um homem ideologicamente muito conservador - formou-se em teologia e filosofia em Friburgo ( foi aluno e discípulo de Marcel Lefebvre) - e talvez pelo que sofreu, na família, na rua, no bairro, na vilória, na sociedade, quando deixou as vestes eclesiásticas para fundar a família onde moro, ensinou-me a tolerância, o paradoxismo (ao mesmo tempo parco em palavras afectivas aos dezoito anos ofereceu-me um livro, "Com a morte na alma", de Jean Paul Sartre, com uma pequena dedicatória, dizia: "Ao Quim Paulo, para ler e reflectir comigo"). Foi também ele que me contagiou na paixão pela escrita (ele escrevia sempre que podia, escrevia cartas, muitas cartas, contra tudo e contra todos, incluindo o Vaticano II,  escrevia que se desunhava num jornal de Mafra (onde era o director, o cronista, o jornalista, o porteiro e o telefonista), a máquina de escrever era um instrumento central lá em casa, e já depois de se reformar deu à estampa dois livros, o último sobre o padre Abel Varzim.  E se o meu pai é jardineiro do grande plátano à sombra do qual cresci imaginariamente, introspectivamente, a minha mãe, ainda hoje o assumo com alguma dificuldade, a minha mãe liga-se umbicalmente à minha rebeldia, ao meu desejo de trabalhar com e para os outros, à minha paixão pela pedagogia, ao meu incontrolável desejo de meiguice, de ternura, de bondade. Foi professora primária durante toda a sua vida, durante a minha infância ficava com a 5ª e a 6 ª classe . Cresci entre os seus alunos, que a admiravam. Andava no Ami 8 de trás para a frente por cada casa a falar com os pais, a ralhar com eles porque sobrecarregavam os seus alunos - eles eram em primeiro lugar seus alunos - com uma lide doméstica e agrícola que não os deixava entregarem-se à pintura, às artes plásticas, à música, à escrita, às ciências e humanidades a que tinham direito para poderem ser melhores pessoas. E eu ia com ela. Eu e os meus dois irmãos. Mulher muito ocupada, muito entregue à escola, às actividades fora da escola como a catequese, fez muitas vezes do Ami 8, mais tarde o Opel Kadet, o nosso pátio de brincar: "-Vocês fiquem aí e não abrem a porta a ninguém, eu já volto."  Levava-nos para Lisboa quando vinha para o seu curso de Letras onde fazia em regime pós-laboral, íamos com ela quando ia entregar os trabalho de uma cadeira, foi assim que conheci pela primeira vez, em carne e osso, Vitorino Nemésio, seu professor. Num desses dias estava tanta polícia à porta da Faculdade, "O que é isto mãe, uma guerra?", que ela nos deixou dentro do carro trancado e foi, com o coração nas mãos, entregar o trabalho que tinha feito a desoras, pela noite dentro. Usava calças, fumava, conduzia, era uma mãe a sério, levava-nos à feira da malveira onde com a fruta da época fazia doces e compotas para o ano inteiro, aos meus sete anos, sentou-me a mim e ao João no colo e leu-nos um livro que dizia que a cegonha não trazia bebés nenhuns ( era o pénis que entrava dentro da vagina e depois deixava lá umas coisas que isso eu e o meu irmão logo nos esquecemos, mas era um nome dos grandes, fomos heróis durante uma semana no pátio da escola, toda a gente queria ouvir a grande revelação). Recusava-se a usar régua e por isso nunca a tinha na gaveta da secretária, o que lhe valeu uma reprimenda quando veio o senhor inspector. Quando veio a reforma do ensino atirou-se entusiasticamente às práticas pedagógicas e artísticas fazendo as várias formações que podia, era moderna, divertida, os alunos adoravam-na, ela confiava neles, muitas vezes íamos passar a tarde a casa de umas alunas que moravam na Carapinheira, na entrada da Tapada de Mafra, eles confiavam nela, tantas e tantas vezes fomos companhia no hospital a uma das suas alunas mais velhas que ficou doente, e nós lá íamos animá-la, dar-lhe mimo, aprendi com ela isso, a importância do mimo na nossa vida, da brincadeira, do ir e vir, passavam a vida a fazer excursões, onde não havia inventava, um dia trouxe os alunos todos para nossa casa para assistirmos a preto e branco ao Neil Armstrong a colocar a bandeira em solo lunar, havia poucas televisões naquela altura em Mafra, o meu pai quando chegou olhou, entre o contrariado e o feliz, era assim a sua Dida, petit nom que se soletrava melhor que o Gertrudes, a Dona Estrudes como ainda lhe chama hoje a empregada lá de casa. Quando eu disse a primeira vez que queria fazer teatro, tinha oito anos, disse-o para cativar as suas atenções depois de a ter ouvido, orgulhosa, contar que o meu irmão mais velho ia aprender a tocar violino. Andei ali desesperado uns tempos, como é que faço, também quero ser artista, uma ida ao Teatro Gerifalto a Lisboa, ao piolho no Monumental, para ver um Gil Vicente, inspirou-me, quero fazer teatro. O meu irmão nunca chegou a aprender a tocar violino mas eu, numa teimosia de que nunca soube, só anos mais tarde, muito mais tarde, não era mais do que a minha inequívoca necessidade da confirmação do amor materno, acabei por vir dar ao teatro, primeiro como actor, depois assim, novamente a escrita, sempre, escrevendo. Este amor desigual e na minha platonia edipiana não correspondido, formou-me. Aquilo que hoje chamamos grosso modo ciúmes, são, em mim, ligações invisíveis entre mim e essa sensação de insegurança que me acompanhou durante toda a vida e era sempre e em todos os lugares uma projeção dessa dor, dessa angústia, dessa ferida original. Claro que a minha vida é como a de toda a gente, por vezes parece que é maior do que nós, que vai cair sobre mim como o céu do Obélix e do Astérix, mas na maior parte das vezes em que olho a folha em branco, seja no caderno azul de linhas pautadas onde, aos quinze anos, escrevi, ao longo de quatrocentas e quarenta e sete páginas o meu primeiro (e único) romance, seja agora na blogosfera ou no facebook que tantas vezes me parece um trabalho penelopiano de fazer engolir a expressão no seu próprio exercício, apercebo-me que a minha árvore deu-me tanto a minha ferida como a maneira de a sarar e que é entre este ferir e curar que eu estou sempre de tal modo que a minha dor, sendo aquilo que me entretém, não me dói verdadeiramente. A dor, sendo que a dor não existe autonomamente da minha percepção dela, da relação que eu estabeleço com ela -  os estóicos fizeram disso a a sua escola aliás - e esta é particular, cultural e ideológica. A minha relação com a minha mãe é simultaneamente a minha ferida e a minha redenção. Hoje, passados quase 52 anos de me ter parido, dei-me pela primeira vez, de uma forma autónoma e independente de uma necessidade qualquer, ao tempo de perceber todas as dimensões do profundo afecto e admiração que tenho por ela. A minha mãe é onde o amor em mim começa e acaba, comecei por escrever para título. Porque o amor -  tal como o ódio - é uma viagem sem fim. Depois corrigi, a minha mãe é onde todo o meu amor começa. Depois, por causa da impossibilidade de nomear a palavra amor sem convocar toda a tralha ideológica que contamina o nome amor, risquei amor e escrevi novamente: a minha mãe é onde todo o meu ser em dádiva começa. É bonito, mas é pretensioso e eu quero voltar a esta ideia simples: o amor. Imagino que um dia, por acaso, nas suas viagens cibernauta, ela possa passar por aqui e não quero que ela tenha alguma dúvida sobre o que escrevi: a minha mãe é onde o amor em mim começa.



quinta-feira, março 27, 2014

Estranhas formas de barro rasgadas pela luz


São três da tarde. Subo a Rua Nova da Trindade e ao olhar para umas portas envidraçadas do Convento da Trindade vislumbro umas estranhas obras de barro rasgadas pela luz, que me atraem como se me estivessem a convidar para dois dedos de conversa. O barro exerce sobre mim um magnetismo muito poderoso. No lugarejo de onde vim havia um dos mais importantes ceramistas do século passado, José Franco, e eu e os meus amigos pegávamos muitas vezes nas bicicletas para irmos da Ada-Pera ao Sobreiro vê-lo trabalhar. Começo sempre por ser um pouco infantil nas minhas conversas com as formas, e o meu diálogo com estas obras de Rosa Anahory não foge à regra: procuro formas humanas, caras, olhos, bocas, costas, seios, troncos, rabos. Fico divertido uns bons dez minutos a juntá-las assim umas com as outras, enquanto ela assiste, um pouco perplexa, a este meu permanecer misteriosamente em silêncio diante das suas peças. Não percebo quase nada sobre as artes plásticas, sobre a escultura, as suas tendências, os seus impasses; aliás não percebo nada de coisa nenhuma. Sobra-me em ingenuidade o que me falta em conhecimento sobre a história da arte. No entanto há uma coisa que aprendi de uma forma transversal: qualquer obra ou trabalho artístico tem lá dentro simultaneamente um silêncio e um diálogo com o mundo que é preciso saber procurar, encontrar, escutar. E esta conversa está a ficar cada vez mais fascinante. Já deixei o primarismo da tentativa de humanização das formas; descobri nelas algumas características que me entusiasmam pelo seu carácter recorrente, permanente: uma intensificação de um movimento que, em espiral, sugere um percurso ascensional. Essa leitura é de uma grande simplicidade e clareza: por mais que as formas se misturem, se enlacem, se cruzem, se confrontem, elas suportam sempre a leitura de um percurso que começa no base da peça e foge para a sua extremidade superior e este movimento, sendo em espiral sugere um movimento da matéria em fuga do próprio corpo. A segunda característica é a de uma conversa embutida na própria peça. Existem frequentemente dois corpos dentro do mesmo corpo e esses corpos estão em diálogo. Não raro estes corpos dialogantes terminam em forma de boca, uma boca escancarada, desenhada em forma de grito. A terceira característica que me chama a atenção nas suas peças é a de que nestes corpos burilados dentro da mesma peça há uma presença de sentimentos como a ternura, o encosto, o toque. Por vezes estão de costas voltadas, em direções opostas, mas há sempre um amalgamento que sugere uma forma de romper a solidão. Já não sendo uma faceta recorrente, encontro também nalgumas peças uma grande plasticidade das suas formas, em contraponto com outras que são mais densas; diria mais pesadas se a dinâmica de movimento que contêm, quase que uma dança, não as tornasse surpreendentemente leves. Estive meia hora a viajar entre as peças da Rosa Anahory. A tirar-lhes a estranheza inicial de obras rasgadas pela luz e a substitui-la por um cruzamento de leituras. E sobretudo ingénuas. Eu não sabia que aquelas formas inusitadas podiam conter tantos diálogos comigo mesmo. Porque eu tenho a certeza de que estive ali sentado a conversar comigo mesmo, a ver-me refletido naquelas esculturas. Como se elas fossem uma superfície vidrada, espelhada. Descobri-lhes uma humanidade essencial. Um movimento de matéria em fuga do seu próprio corpo. Uma tensão entre solidão e corpo-a-corpo, dança. E quando saio para a rua olho novamente as peças. Acrescento à impressão do meu primeiro olhar: estranhas obras de barro rasgadas pela luz, pelo movimento, pela solidão; matéria fugindo dos corpos.

sábado, março 15, 2014

POEMÁRIO FACEBOQUIANO | PRÓXIMA ESTAÇÃO


 

Não há correspondência com nenhuma estação.

Os passageiros devem desembarcar.
Caminhar pela penumbra do cais.
Avançar isolados.

Não há correspondência com nenhuma estação,
estado
ou situação.

É preciso viver de novo.

É preciso viver tudo de novo. O fascismo. A exploração. As lutas operárias.
O avanço napoleónico na estepe russa.
A miragem dos eslavos
à porta da cidade imperial.
A própria da cabeça guilhotinada.
O nosso sangue.

Não há correspondência com nenhuma estação. O próximo lugar
é o fim da linha,
o começo de uma viagem,
estação terminal.

Estação seminal.

Não há correspondência com nenhuma estação.

Os passageiros devem continuar calados.
Caminhar na euforia de um discurso
unificador.
Unificado pela alegria das palavras-chave.
Repitam comigo: crise, dívida pública, privatização,
empreendedorismo,
swapps, reestruturação, impostos,
taxas compensatórias,
constitucionalidade,
sacríficios.
 

Soletrem devagar. Sílaba a sílaba. O
sabor das palavras sobrevive muito tempo à sua passagem pelo palato.

Ainda somos travo do fascismo que nos habitou.

Os passageiros que caminham pelo cais devem permanecer
sozinhos. Há palavras-chave que virão ser atiradas
para guiar os corpos cansados
que voltam para casa.

Os corpos cansados voltam sempre para casa.
Todos os passageiros de todos os cais devem saber de cor
os enunciados das palavras chaves.

Há uma diferença entre despotismo e estupidez,
embora pareçam irmãos saídos da mesma mãe,
frutos lançado pela mesma árvore.

Saber distingui-lo é o essencial para andar no cais.
Para voltar para casa.


(publicado primeiro no facebook. reescrito)

terça-feira, março 04, 2014

A REALIDADE VITIMADA




"Um sítio onde não sou sucessivamente questionada ou menorizada sobre as minhas opiniões por ser comunista. Ali, respira-se livremente e fala-se bem alto. Discorda-se, grita-se. E do caos nascem coisas que por mais tempo que viva estão gravadas na minha pele."
Lúcia Gomes
MANIFESTO 74

Passou este fim de semana um ano da primeira iniciativa em que participei do QSLT | Que se Lixe a Troika. Se eu quisesse dizer o que é que eu retirei politicamente da minha experiência com o QSLT, não seria fácil. Foram muitas coisas e nem todas elas decorrentes apenas directamente da experiência única deste "colectivo de pessoas individuais". Algumas delas são águas de um mar cidadão a que vim dando crescente importância desde o 12 de Março de 2011. Dou especial relevo às acampadas do Rossio e aos Artistas e Públicos Indignados (a que me associei por convite do Paulo Raposo). 


Uma das coisas seria indiscutivelmente esta descoincidência entre aquilo que os media falavam de nós (principalmente quando se cansaram de assumir de que não compreendiam nada do QSLT e começaram a exibir a mesma ignorância com que, de uma forma generalizada, tratam toda a realidade politica que escapa aos dispositivos de compreensão já instalados) e aquilo que era a nossa prática, onde cada um poderia ter a voz que quisesse ter e onde as manipulações existentes eram, como em tudo o que é humano, decorrentes das idiossincrasias de cada um e não de planos orquestrados pelo partido a, b, ou c. 

Outra seria a de que vi ali a demonstração comprovada que o sectarismo político que associamos aos movimentos e partidos políticos de Esquerda não é um facto politico consumado e inevitável, resulta sim do calcar e recalcar do mesmo caminho divergente em que a política se transformou num negócio ideológico (e muitas vezes de contrafacção). O nosso corpo nunca esquece o que um dia aprendeu. Seja um movimento, um toque, um cheiro, um silêncio, um som. Tenho gravado no meu o riso, a alegria, a força, a explosão dos primeiros anos a seguir ao 25 de Abril onde as pessoas festejavam juntas, subiam ao mesmo palanque. Durou pouco, é certo. Mas ficou-me na memória. E naquelas reuniões do QSLT no Espaço Sou, nos Amigos do Minho ou na Guilherme Cossoul de Campolide, essa memória de uma festa comum acordou. 

Mas talvez aquela que colocaria em grande destaque foi o de ter percebido, e começado a trabalhar, o sectarismo ideológico com que eu pensava o Partido Comunista Português. Tenho como todas as pessoas sabem pelo que publico aqui ou no facebook as maiores divergências políticas com muito daquilo que este partido defende. E mesmo quando defendo as mesmas coisas as mais das vezes não as defendo da mesma maneira. Tenho aliás opiniões que eu sei, eriçam todos os pêlos dos meus companheiros do QSLT que são comunistas e que ainda continuam ligados a esta minha pagela do facebook. E também é verdade que para desfazer este meu sectarismo ideológico fiz uma operação política arriscada: coloquei os partidos, todos eles, num plano inclinado em relação às suas capacidades (e vontades) de materializarem expectativas comuns e corresponderem ao que a comunidade deseja realizar. É o relativismo político, pá!, claro que também é. 

Não é só isso no entanto. É o aperceber-me de que naturalmente, uma tendência para a convergência que foi produzindo sentido em cada um de nós desde há 40 anos, levou a uma estigmatização natural do contributo do Partido Comunista Português e dos seus militantes para a sociedade portuguesa. Lembro-me de aos quinze anos ter escrito a um cronista de um jornal que eu admirava muito pela sua escrita (há dois géneros jornalísticos que me fascinam muito, a entrevista e a crónica) e que escrevia num jornal de direita (era um templo em que era fácil perceber os jornais de direita e os de esquerda porque eles se assumiam assim) elogiando-lhe a prosa mas vituperando-lhe o anti-comunismo. 

Entre o jovem de 15 anos que defendia os valores de tolerância (até para se defender de uma certa intolerância religiosa com que fui, brandamente, educado) e o homem de 50 anos que a 20 de janeiro entrou no plenário do QSLT, vai todo um abismo. Mas apercebi-me de que hoje, ao contrário de ontem, já não precisamos de ser anticomunistas. O longo caminho de estigmatização do PCP ( e nem vou discutir o papel que o próprio partido pode ou não ter nisso, um ambiente comunicacional é interactivo e cheio de reciprocidades) permite-nos dizer apenas com ar consensual que eles são muito bons nas câmaras, nas manifes, na festa do avante e, vá lá, com alguma condescendência na defesa dos sacrossantos direitos dos trabalhadores ou com um lugar na tribuna das comemorações sobre o 25 de Abril. E depois encolhemos os ombros e pensamos, coitados, ficaram na pré-história, são pós-traumáticos de coisas como a clandestinidade, a prisão política, a guerra de África, o PREC. É o consensualismo democrático em que bebem partidos de esquerda e de direita. 

Não vou apôr à estigmatização a romantização do contributo do PCP. Apenas reconhecer que a estigmatização é sempre dupla face: ela produz efeito no que é estigmatizado e também no que estigmatiza. E é esse efeito em mim que me preocupou e me levou a tentar perceber o que se passava. Não era uma coisa de querer ser bonzinho com os comunistas que estavam ao meu lado a combater por uma causa comum, e o modo como os via generosos e tolerantes e assertivos e empenhados e focados sempre mais no colectivo do que em egotismos larvares, era muito mais o eu querer ser melhor pessoa. E o de o quanto me vim apercebendo que a componente política é essencial para o meu desenvolvimento humano.

Porque o PCP sendo um partido ideologicamente muito robusto (e pesado), com um património político construído na base do sofrimento e da resignação, defende-se muito melhor da estigmatização a que é sujeito do que nós da estigmatização a que o votamos. O Partido Comunista vive há bastantes anos numa espécie de clandestinidade política em democracia a que foi sendo votado, primeiro pelos movimentos políticos que se assumiam como anticomunistas e depois por todos os sectores, da esquerda ou da direita. Dizer que ele se adaptou bem a essa realidade é muito conveniente. É claro que ele já tinha um conhecimento histórico do que era viver em ditadura e na clandestinidade. Mas se ele não quisesse ser poder, se ele quisesse ser só oposição como nós dizemos (digo nós porque tantas vezes o tenho pensado e dito) então nunca compreenderíamos que ele lutasse pelo seu lugar no parlamento europeu, no parlamento português, nas autarquias. Se o virmos por esse lado de repente em vez de um coro de oposicionistas dinossauricos passamos a poder vislumbrar um pragmatismo e um empenhamento nas condições mais pequenas da vida das pessoas. Nós dizemos que os comunistas portugueses falam como se fossem só oposição, como se não quisessem ser poder, como se repetissem sempre a mesma cassete.  E repetimos para toda a eternidade a mesmíssima cassete sobre os comunistas . É claro que os dinossauros são eles. Nós somos pós-pós-pós modernos. 

Não pretendo discutir as razões que nos fazem dizer isso. Nem a falta de razão que nos assiste quando perfilhamos este pensamento pronto-a-pensar sobre os comunistas portugueses. Que chega a ser ridículo. Só venho chamar a atenção para os efeitos nefastos que esta operação de desqualificação, de menorização dos comunistas portugueses como agentes políticos tem para a qualidade da nossa vivência democrática. Não são eles que são as vitimas. Somos nós sejamos nós com eles ou simplesmente nós, sozinhos. Ela , a estigmatização autoriza a prévia desqualificação discursiva antes da mensagem propriamente dita. Ou, independentemente da mensagem propriamente dita. E que trabalha níveis mais profundos do nosso comportamento, como a sanção ideológica sobre o outro, o outro que não pensa como nós, o outro que vê as coisas de uma maneira diferente da nossa, o outro que não faz parte do nosso grupo, a que enfaticamente chamamos nós e que não é mais do que a projecção egóica da visão de mundo de cada um de nós sobre a visão do outro. Porque o "nós" que estigmatiza o comunista português, o partido comunista português, é um nós sem nó, sem rede, sem elo, é um nós desligado e vazio de uma comunidade que o caracterize. É um "nós" que junta o militante activo de extrema-direita com o militante activo de extrema-esquerda. 

Já o disse, não pretendo apor uma visão romanceada do papel dos comunistas portugueses, do Partido Comunista Português. Nem excluir os mesmos deste sistema, como se fossem apenas vitimas. Só que é evidente que não estamos a falar do mesmo nível de prejuízo para a tentativa de construirmos uma percepção comum da realidade a estigmatização a que o PCP é sujeito com aquela a que por exemplo este partido vota o Partido Socialista. É a realidade enquanto possibilidade de experiência comum que é, em primeira mão, vitimada. Estou apenas a dizer-vos o quanto aprendi por começar a ouvir, falar, conversar e discutir com aquele ou aquela militante comunista sem pensar que ela ou ele eram militantes comunistas. As uniões de ideias eram entre razões não entre partidos. Quantas vezes não vi pessoas do mesmo partido a apoiarem as ideias de uma pessoa de outro partido ou sem partido nenhum contra a opinião de uma pessoa do seu próprio partido e nunca isso me pareceu estranho.

Aos 40 anos da nossa Revolução de Abril talvez seja altura de a sentar no divã do psicanalista e abordarmos de olhos nos olhos esta estigmatização do Partido Comunista Português. É uma doença muito profunda e que actua a níveis muito diferenciados do discurso político, social e até, religioso. E que está também ligada, intimamente ligada, a este este odioso centralismo democrático que mina o nosso sistema democrático incapacitando-o de produzir verdadeiras e reais alternativas de poder, e que escancarou portas ao maior ataque ao nosso sistema político a que pude, pudémos assistir nos últimos quarenta anos. Veio de fora, pois veio. Mas acobertou-se cá dentro. 

E o que fazer? Nas ciências da comunicação a pragmática das relações comunicacionais ensina-nos a perceber que elas se baseiam numa estranha reciprocidade, mimetismo que tende para um padrão de comportamento. Quando há uma situação em que verificamos que há um comportamento que causa dano aos próprios ou aos que com eles se relacionam, qualquer discussão sobre o comportamento de cada um sem alterar um determinado padrão de comportamento é, ou acaba sempre por caminhar para ser, uma discussão sobre o poder, também o poder de definir o que é ou não o comportamento correcto.  

Muitos dos que me lêem estão a pensar que estou a defender os comunistas portugueses e o Partido Comunista Português. Ao fazê-lo estão a integrar-se no padrão de comportamento da estigmatização. É claro que me podem dizer que o PCP também estigmatiza grande parte dos movimentos políticos à sua direita, e muito principalmente o PS, o que faz com que se crie um circulo de exclusão. É verdade. Só que é evidente que no que toca ao prejuízo para a tentativa de construirmos uma percepção comum da realidade, a estigmatização a que o PCP é sujeito por toda a sociedade política portuguesa, não se encontra no mesmo nível de grandeza, na mesma escala de valor daquela a que por exemplo este partido vota o Partido Socialista

Estou a defender a ruptura, a mudança do padrão com comportamento de desqualificação e estigmatização do Partido Comunista Português e dos comunistas portugueses e isso é defender um novo contexto de comunicação. 

É evidente que a experiência porque passei não é comum na vida política portuguesa. Se o fosse, por exemplo, os partidos da esquerda portuguesa defendiam o que lhes é comum e não deixavam de o fazer com receio de que pudessem vir a ser atacados de uma forma muito maior pelos outros partidos de esquerda. Chega a ser ridículo que o PS, o BE, o PCP andem a clamar em tempos diferentes contra a morte do Estado Social e não sejam capazes de fazer um coro sobre esse mesmo assunto. É por isso que o cidadão comum não os entende. Ele vive num outro paradigma. A direita mesmo defendendo coisas que são contra a vida das pessoas comuns, vive e luta dentro de um paradigma da reversível irreversibilidade que está mais próximo daquilo que é a percepção comum de cada um de nós. 

É por não ser comum que sinto necessidade de partilhar esta reflexão. Eu, que vivi numa ludoteca política no 25 de Abril, pude encontrar-me depois num micro-laboratório político, o QSLT, onde pude aprender que a inevitabilidade política de uma esquerda de costas voltadas uns para os outros é uma treta que germina na terra para a enfraquecer e torná-la estéril.  Não quero, recuso-me fazer parte de uma realidade vitimada. E o primeiro passo é reconhecermos, sem mas nem meio mas, que fomos cristalizando a nossa opinião sobre o Partido Comunista e os comunistas, e que isso não nos permite acolher o seu contributo para a vida política com a generosidade que é devida a um partido com a sua história, a sua prática e a sua implantação na comunidade e que dessa estigmatização somos muito especialmente, vítimas. 



domingo, fevereiro 16, 2014

DAS VIRTUDES, E DOS INCONVENIENTES, DO USO DO DEDO INDICADOR

Acordei com uma vontade imensa de abrir os pulmões e gritar contra a mediocridade do mundo, dos outros. A respiração é vida e o grito faz um trabalho incrível na circulação do ar pelas vias respiratórias. Devíamos fazer isso mais vezes. Abrir a janela e gritar a plenos pulmões contra a mediocridade do mundo, dos outros. É uma terapêutica cuja bula quase não tem contra-indicações. Excepto, claro, aquelas duas, básicas, que a escola da vida nos ensina logo quando começamos a usar o dedo indicador: primeira, a de que gritarmos contra a mediocridade do mundo, dos outros, não nos salva da condição medíocre da nossa própria existência; segunda, a de que não vale a pena gritar contra a mediocridade do mundo se apenas o fazemos porque não conseguimos mais ouvir o grasnar insuportável dos nossos dias medíocres.

sábado, janeiro 04, 2014

Olhos-olhos




Acreditasse eu ainda  no que digo,
diria, até ao fim.

Acreditasse eu nas palavras,
diria,
lutarei até ao fim.

É este o meu silêncio.

Não é de ouro,
nem de prata, nem tem pedras,  preciosas
ou não,
descalças vão as ruas onde me revolto.

E nem é silêncio. É isto,
um ruído,
ruir,
pedaço a mais de verbo,
sempre um quase 
na nossa vida.

Acreditasse eu ainda no que digo,
na força, na magia das palavras,
e diria aquilo que já só encontras
na menina dos meus olhos.







Natal no Chiado

sexta-feira, janeiro 03, 2014

Revolução



Apetece-me ser uma flor na tua boca. 
Ser a pétala do que falas quando explodes. 

Flor que se incendeia quando
a tua boca, mais do que grito,
for bandeira.


O resto é excesso, verbo a mais.

Condição de Experiência Relevante

Comecei por ser educado na moral cristã que proclamava a fraternidade e a caridade as pessoas. Depois andei, nos idos de 74, 75 a aprender a substituir a terminologia cristã e católica por outra, mais adequada às aprendizagens políticas de um adolescente no meio da revolução. Era tempos em que se dizia que Jesus Cristo tinha sido o primeiro comunista e em que se substituía a palavra caridade pela palavra solidariedade (palavra que perdeu o peso dialético, começando a passear pela fraseologia católica quando serviu para designar um grande sindicato polaco, com fortes ligações à Igreja Católica). Cresci muito com a palavra solidariedade. Enquanto emancipação do outro como igual. Mas já não me basta para falar da vida, da minha vida, da vida do mundo na minha vida. A palavra hoje é: partilha. Cada um tem algo para dar e a nossa vida em comum é mais rica se soubermos perceber o que podemos tomar de cada um. Aprendi-o de forma derradeira o ano passado com uma amiga. Enquanto a ajudámos a morrer em casa, ela ajudava-nos a compreendermos a lidar com o transitório da vida e com a inevitabilidade da morte enquanto diálogo permanente de cada um com a vida. Para os meus amigos tornei-me um pequeno herói já que achavam que o nosso grupo de entreajuda era um caso muito especial de afecto e partilha. E era de facto. Mas recebi incrivelmente mais do que aquilo que dei. E eu sabia disso e era por causa disso que eu lá ía. Eu era tão egoísta como qualquer um de nós. Apreendi o que pode ser cada um de nós em estado de dádiva. Não aprendi a ser em estado de dádiva, não me interpretem mal. Em estado de dádiva só vivem os santos e eu aprecio demasiado a impureza e a imperfeição para poder almejar a alguma espécie de santidade. Apenas pude experimentar, tangencialmente, o que é o ser quando procura abrir-se totalmente, sem restrições, à dádiva, à partilha. E como isso pode afectar toda a nossa construção social da realidade. Há dias, lá no Teatro, tivémos um espectáculo sobre os sem-abrigo. Eu tinha uma ideia dos sem-abrigo que é a comum entre as pessoas hoje que dão algum relevo ao drama humano que está por detrás das pessoas serem atiradas a viver para o meio da rua e que é uma ideia assente na solidariedade. É uma ideia generosa mas não (me) basta. Quem vive hoje sem uma casa precisa de comida, conforto, mais acesso à sua cidadania e á rede de cuidados básicos, mas tem também algo muito importante a dar: a relevância da sua experiência de sobrevivência fora dos padrões de conforto que adquirimos como essenciais, porque vitais, e pelos quais pagamos o preço que atribuímos a todas as coisas vitais.Podemos viver de outra maneira? Faz sentido organizarmos a nossa vida em torno de satisfação de um determinado tipo de necessidades? 

quarta-feira, dezembro 18, 2013

Um dia todos faremos jornais


É com esta frase de José Saramago que nos inspiramos para um debate sobre as redes sociais, sobre a forma como nos organizam a livre expressão. Espero que possa contar com muitas pessoas interessadas em discutir este fenómeno das redes sociais.

segunda-feira, dezembro 16, 2013

Não há nada que me destrua mais as esperanças sobre o jornalismo do que...ver televisão e jornais no próprio dia. 

"A Casa, ou o Cultivo de Flores de Plástico" de Afonso Cruz pela Gato que Ladra

Ontem foi dia de conversa com o público no Teatro da Trindade. É uma iniciativa do Projecto Comunidade e eu tenho de lá estar para dar o pontapé de saída na conversa. No final da representação Rute Rocha (encenadora), José Mateus, Pedro Barbeitos, Maria D' Aires e Cristina Cavalinhos, conversaram com os espectadores que quiseram ficar. Como estava com o meu filho e lá em casa queríamos ver os dois a peça resolvemos levar os miúdos. Estava com algum receio, confesso, o espaço é muito intimista, muito próximo de um fazer teatral que eles (ainda) não conhecem tão bem e não sabia se a peça, o vocabulário, se adequava aos miúdos, e por isso fui ver o espectáculo na quinta-feira. Sai de lá com os olhos em água e decidi logo ali que não eram os dois ou três "foder" que tornavam imprópria a peça. Ao jantar de sexta, preparei-os. Falámos sobre a peça, sobre o seu tema, disse-lhes que iam ouvir alguns palavrões (disse-lhes quais eram) e que isso se devia à forma como o espectáculo estava comprometido em tornar mais convincentes e humanos os seus personagens. Ontem fomos ver. Estiveram atentos, compenetrados. E no final disseram que tinham gostado bastante. Hoje era a festa de natal para os filhos dos trabalhadores. Levei-o ao Zorro, um musical. Deixei-o lá ficar, gosto do espectáculo mas já o vi algumas vezes. No final fui ter com ele. 
-Então gostaste?
- Gostei, é giro.- fez uma pausa- mas gostei mais do outro de ontem. Este é para os mais pequenos. 
E eu a gostar tanto de o ver assim, crescido, a crescer. 

quarta-feira, dezembro 11, 2013

A minha vida com gatos


Quando era miúdo não gostava de gatos. Ou melhor, não lhes dava muita atenção. Como gostava de cães incorporei essa antipatia canina pelos felinos. É verdade também que houve um acontecimento que me fez pensar que os gatos eram criaturas muito irritantes. A certa altura, na Rua Domingos Machado, em Mafra, havia um baldio resultante de um prédio em construção. Lá acumulavam-se gatos. Gatos e lixo. O meu irmão mais velho gostava muito de animais e não era como eu, não colocava de um lado os bons, os que mordiam, e do outro os maus, os que miavam. Eu também gostava muito de animais, cães, patos, galinhas, pombos, pintainhos, íamos à fira da Malveira e trazíamos criação de patinhos e pintainhos que depois tratávamos entre nós. Mas estou a desviar-me da história: no baldio em frente nasceu uma ninhada. Que era preciso alimentar. O bom do meu irmão foi buscar leite e um prato e lá alimentou aquela gataria toda, de a a z. Nós gozávamos com ele. É mesmo piegas, mariquinhas pé de salsa. O certo é que um casal de velhotes que morava em frente via a cena e comovia-se. Ia-se comovendo. Quando a comoção já não dava para conter entre quatro paredes chamou o meu irmão. Deu-lhe vinte escudos e um saco inteiro de caramelos espanhóis. Nãos sei se sabem duas coisas: naquela altura, estaríamos no final de sessenta, cinco escudos era uma pequena fortuna. Os nossos pais davam-nos de semanada cinco tostões que davam para cinco pastilhas pirata. Os rebuçados de coleção com os cromos da bola eram a meio tostão. Além disso os caramelos espanhóis estavam no top ten das nossas predilecções mandibulares. Para resumir: nós, os valentões, os fortitanas, os isto e aquilo, andámos uma semana de cu para o ar (e olho na janela dos velhotes) a chamar bichaninho, bichaninho, anda cá. Ao fim de uma semana, com a moral completamente em baixo desistimos, claro. Aos outros não sei que lhes perdi o rasto mas a mim ficou-me por muitos e muitos anos, uma irritação canina por gatos. Não lhes ladrava por educação mas cá dentro, interiormente, rosnava. Já era muito tardia a hora  quando comecei a gostar deles. Primeiro o curso de teatro da Comuna onde o João Mota exaltava as qualidades dos felinos e nos punha a fazer o gato de Grotowski fez cair as hostilidades. E depois aproximei-me ideologicamente deles enquanto me afastava um pouco da ideia de fidelidade e subserviência dos canídeos. Os gatos eram independentes, vadios, amavam a liberdade e se calçavam umas botas tornavam-se nuns aventureiros e nuns espertalhaços. Além disso, aquela ideia de que eles é que nos escolhem, dava-me a mim, um poço de insegurança, uma grande sensação de bem estar e conforto. Ver um gato aproximar-se de mim, como a Ella, a vadia da Ella, fazer questão de se sentar ao meu colo, colocar-se em cima do computador, andar para trás e para a frente para me mostrar que a casa é dela, é algo que me dá muito prazer. Tanto que até tive de vir aqui fazer-lhe esta pequena serenata. E lembrar-me da frase anarquista que tantas vezes me arrancou um sorriso: gosto de gatos porque não há gatos-polícia.


terça-feira, dezembro 10, 2013

Tal e qual Mandela


Estava na paragem do 58 no Cais do Sodré. Faltavam dois minutos para o autocarro passar. Via-se ao fundo quando a sua voz me agarrou. Apeteceu-me que dois minutos demorassem a passar. Sou um coscuvilheiro intermitente. Ela era negra, já com uns anos no lombo, os pés maltratados, as unhas partidas. 


- Fizeram-lhe tanto mal e agora...Agora só sabem dizer que ele era um santo...
Percebi que falava no Mandela. Falava muito rapidamente, as palavras atropelavam-se a expressões, a interjeições, a sua interlocutora conhecia-a bem, presumi. 

- Ele era superior a eles todos.
Quinze horas. Numa cidade europeia, uma capital de um pequeno país intervencionado, o uma mulher negra, rosto sofrido, corpo amachucado, senta-se no banco e começa a falar de Mandela como se fosse a coisa mais importante da sua vida. 

Não falou de Cavaco, disse estes cabrões, mas disse-o como quem pragueja e não se detêm muito tempo a figurar o demónio, falou apenas em Mandela.
- Era tal e qual o meu pai. Lembras-te o que ele me dizia? Vai à frente, não olhes para trás, eu se deus quiser vou-te arranjar o caminho, tirar-te umas pedras , as que puder, de um modo um pouco melhor do que aquele que eu tive. Era assim o Mandela. Por causa dele estamos todos melhores.
E depois começa a falar de um canalha que se meteu na sua vida. Ao principio não o era. Vestiu-o até de fraque, o fraque dos patrões, disse, casou com ele, fez-lhe filhos.
- Ele era mau. E quis levar as melhores coisas com ele, deixou os filhos sem nada, foi-se entreter com ela.Mas quando foi para morrer veio ter a minha casa. Ainda tive de o enterrar. O meu pai sempre me disse que ele não prestava. O meu pai via as coisas mais ao fundo. Era como o Mandela. Homens como ele nunca morrem, só se a gente deixar. 

E foi neste momento exacto que a chamada caiu. Ainda a ouvi dizer, estou aqui, estou aqui, mas depois desistiu. Tinham passado dois minutos e o autocarro chegara.

terça-feira, março 12, 2013

O sentimento de impasse e bloqueio na vida deste país - e que António Pinho Vargas bem caracterizou como resultado de um "golpe de estado" tão ilegítimo como, aparentemente  legal - é mais uma janela aberta sobre a política portuguesa. Na minha vida presenciei algumas. Realidades que pareciam imutáveis e que caíram como um baralho de cartas. Quando o sistema politico parece não ter capacidade de dar resposta àquilo que são os anseios das pessoas, a ruptura surge. E surge tão naturalmente que aquilo que era impossibilidade se torna possibilidade. Dou um exemplo: muitos de nós analisamos a incapacidade do sistema democrático promover objectivamente a melhoria de vida da comunidade portuguesa como um sinal de que pode advir aí uma ditadura. Como o nosso referencial político é esse, democracia versus ditadura ou democracia versus terrorismo activamos logo o sinal de alarme. Esquecemo-nos de uma coisa: em relação à ditadura, quem quer jogar como vencedor o jogo do domínio, por mais incompetente que pareça, e por mais incompreensíveis que sejam os seus testas de ferro, teve as aulas de ciência política necessárias para perceber que é muito mais proveitoso politicamente aproveitar as possibilidades que o sistema democrático lhe dá para fazer o "golpe de estado" por dentro, como disse António Pinho Vargas. Aquilo a que chamamos ditadura já cá está, enquanto sequestro da possibilidade que uma comunidade tem de, em comum, projectar o seu bem estar. Todos nós o sentimos. E isso é muito bom, que tenhamos cada vez mais essa percepção. É a tal janela aberta sobre a política portuguesa. Quase quarenta anos de democracia política geraram uma entropia no quadro politico fornecido pelo sistema democrático. Estes novos ditadores e a corporação de interesses que representam, foram eleitos por nós e o quadro politico ( e não o sistema democrático, isso é o erro de análise em que caímos muitas vezes) tal como está, não parece fornecer nenhuma solução à vista para a mudança de orientação política. A única coisa que há a fazer é, ou ficar preso à impossibillidade de agir, e deixar que o saque do interesse e do património público continue, ou fazer o mesmo: tentar, dentro do sistema democrático, aproveitar ao máximo as possibilidades que ele dá para pressionarmos a capacidade dele agir. Temos de ser pragmáticos e objectivos neste ponto: ao mesmo tempo que o quadro político não parece fornecer nenhuma alternativa a este sistema ( quem acredita hoje em Cavaco Silva, em António José Seguro, Jerónimo de Sousa, João Semedo e Catarina Martins como actores que, sem mudança de guião, podem, por si só, mudar o quadro político, anda a fornecer-se de muito mais do que vitaminas para conseguir viver o dia a dia, cada dia), ao mesmo tempo tem havido movimentos que pese embora sejam acusados de não conseguirem criar uma significação política alternativa têm indicado o único caminho possível dentro de uma atitude não violenta e pacífica: o reforço da participação cidadã. Este reforço tem de conseguir encontrar formas de agir que se concretizem em aspectos chave para a vida da comunidade como a Justiça e a construção do Estado Social. É urgente um Fórum de cidadãos com juristas dispostos a garantir que se possa levar a tribunal os principais casos em que o interesse público tem sido tripudiado. É urgente ocupar as ruas com o nosso protesto, com a nossa existência, com a nossa festa ( e encontrar formas de prevenir a violência policial e de grupos). É urgente dar visibilidade ao movimento de cidadãos que se tem criado e àquilo que parece serem as suas pequenas causas. É urgente que surja na esquerda portuguesa um movimento político capaz de romper com o atavismo político gerado pelas sequelas do confronto politico partidário dos últimos quarenta anos. É urgente que se faça este vaivém entre a nossa capacidade de participarmos, de não aceitarmos, de criarmos uma experiência política significativa, e a mudança do quadro político que nos representa. Se os partidos existentes conseguirem fazer isso, que o façam, se não o conseguirem, que criemos novos movimentos, mais ágeis a perceber a razão do sopro e da poesia que por aqui anda na nossa revolta. Se o consumismo foi o motor do nosso atavismo, pois, agora que só nos sobram cêntimos e já nem na loja dos trezentos conseguimos dar curso ao nosso adicto consumir, tornemo-nos adictos da luta, da consciência política, do inconformismo. 

Criemos Comunidade.