segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Para sempre não existe, palerma




Acordaram-me cedo hoje, sete e um quarto da manhã. A voz doce da secretária do meu editor preferido. 

- Mr. Joyce...- Ela trata-me sempre pelo nome do meu escritor favorito, é um acordo secreto. Nem me dei ao trabalho de responder. Eu sabia que aquela voz melífula, implacável, viria de novo. - Precisamos de um texto seu sobre a eternidade.

- Sobre...

-A eternidade, Mr. Joyce...

A cabra, pensei, já não disfarçava o desprezo. Desliguei o telefone. Antes mesmo de lhe dizer, ou poder dizer, ou ter dito, a eternidade não existe, palerma.

Liguei de novo o Californication na Netflix, papei oito episódios de seguida até perceber que estava a morrer de tédio, aquele a eternidade, Mr. Joyce perseguia-me. Não pensava na eternidade desde que o Luís Gouveia Monteiro fez aquele trocadilho, a eternuridade. Na altura achara graça, até porque andava a querer romance com uma bloguer que me mandava diariamente links do blogue dele, e eu a pensar. será que também lhe manda a ele links do respirar?,  

a verdade é que nada daquilo sobreviveu na memória e permaneceria para sempre no meu arquivo morto, o meu Alzheimer deliberado, não fosse este pedido inusitado e cruel, há coisa mais terrível do que pedir para escrever sobre a eternidade a um escritor que insiste em ser chamado Mr. Joyce?

Fui buscar um whisky. Toda a gente sabe que eu não bebo álcool, bebo água das pedras, apenas água das pedras, na minha discoteca preferida servem-no com um pouco de cardamomo, hortelã, lima e uma rodela de pepino, no palato o resultado não é dos melhores, aliás para ser mais horrível juntei-lhe agora cardamomo, mas enternece-me ver o ritual da preparação desta amálgama de sabores, primeiro com uma pinça a rodear a boca do copo com um pouco de casca de lima, depois o gelo, um rodopio para a hortelã deixar cair o seu travo, e finalmente uma rodela de lima seguida da de pepino, o pepino só está ali para que eu pergunte, porquê o pepino?! e a seguir a resposta friendly, prova. logo me dirás.  Tenho uma garrafa de um wisky 12 anos, lá dentro chá de menta, como no teatro, 

a minha vida é um palco, a secretária do meu editor chama-me Joyce enquanto me pede que eu escreva um texto sobre a eternidade, porra, porra fui eu que acrescentei, tal como o cardamomo, bebo Balatines 12 anos que sabe a chá de menta, quebro a linha do texto como o faz tão bem Lobo Antunes, só ainda não sei escrever como o Dinis Machado, sem virgulas. sem rede, sem nada, só esta angústia, escrever como penélope, como se a morte espreitasse no fim do texto, o que é a eternidade, caramba?

A verdade é que entretanto já se passaram três horas, a vontade de escrever foi-se, volto à minha tristeza habitual, as minhas dores, os meus entretantos. Não hei-de viver para contar. A eternidade é isto, este Balantines 12 anos com sabor a chá de menta. Quando ela me morreu, ou melhor, enquanto ela se despedia de mim, eu disse-lhe:

- Fazes batota, Isabel. És uma menina má e fazes batota. Dizes que não tens medo de morrer mas és budista e por isso não acreditas na morte, em morrer. Tu para ti vais atravessar uma parede imaginária, não vais morrer. És uma bad girl, Isabel.

Ela ria-se. Quer dizer, sorria. As bochechas dela já não tinham carne para armar um sorriso, o ar também lhe faltava para o essencial, respirar, manter-se viva, mas eu sei, ela gostava que eu lhe chamasse bad girl. É sempre assim, as cabras gostam que lhes chamemos santas, as santas, cabras, a vida nunca será outra coisa senão este paradoxo que nos escorre entre os dedos, uma pulsão para o inenarrável, para o espanto, para o último-último poema

Todas as eternidades do mundo neste sufoco. Morri tantas vezes. Morro todos os dias. Dormir é uma forma de nos prepararmos para a morte. Como dançar. Não conheço toque e foge mais manso e cru com a morte, do que uma dança, um volteio fatal na pista. Dura o tempo de um tema. Sete minutos. O tempo de uma morna na voz doce do Calu. O meu corpo respira com o dela, nem lhe hei-de saber o nome, o meu conhecimento é outro, conheço-lhe o que ela de si própria, em si própria, é desconhecimento, mistério, fantasia, e dá-mo assim, sem rede, nos sete minutos de uma dança, ela talvez ache que por eu ser mais gingão e afoito na pista também não morro ali diante do desconhecido que sou quando bailo, mas a verdade é que também eu não saio ileso deste contact-improvisation com que à nossa maneira honramos este privilégio de matéria viva ( acrescentamos nós os humanos, privilégio de matéria em carne-viva, gostamos sempre de acrescentar, nem que seja um pouco de cardamomo).

De todas as mortes que trago no corpo há duas que me desalentaram de andar aqui a passear no mundo dos vivos. Não serve para nada esta vida. O meu pensamento já desistiu há muito do mundo. Esta frase, o meu pensamento desistiu há muito do mundo, poderia ser um titulo de um romance. O romance rasca da minha vida, entre Mafra, os Olivais, Miratejo  e Alvalade. Tal como Caeiro, não tenho filosofia, tenho sentidos. As minhas moléculas continuam vivas. Todos os dias fazem o balancete entre as que morreram e continuam a querer procurar o calor do sol para se reproduzirem e continuarem a saga. Ignoram-me. Se me ouvissem já me teriam escutado pedidos de desistência. Sou muito ansioso, por vezes, algumas vezes, tenho pressa de ir ter com os meus mortos-vivos. E não faço batota, como a Isabel. Eu já não acredito no Além. O meu material molecular despreza-me. As minhas moléculas não falam comigo e eu não falo com elas. Não posso, nunca as entenderia. O meu pensamento já morreu e o meu pensamento era a única linguagem que nos unia. 


De todas as mortes que trago no corpo há duas que me desalentaram de andar aqui a passear no mundo dos vivos, repito. Dois suicídios. Dois suicídios de dois actores. Um actor e uma actriz. O Pedro e a Maria. Uma pendurou-se num cinto, o outro atirou-se de um quarto andar da sala de atendimento de um hospital público. E ainda dizem que os actores são falsos, caralho.

- Puseste-me a chorar, filho da puta! - disse de mim para mim, eu amava-os, conversa dura entre o narrador e o personagem. Detesto os escritores narcísicos. Colocam-se sempre na pele dos personagens principais. Há uma eternidade que me salva sempre. Vejo a Zé, a Cláudia e o César, são os meus heróis, vejo-os a brindarem junto de um glaciar na Patagónia Chilena, morreram num voo picado sobre o gelo cortante e frio, eram jovens, tinham trinta anos e pouco, carreiras de sucesso nos jornalismo,  não hesitaram, deram a vida por um instante, um olhar, e é por causa disso que te digo,

tens a certeza que ainda queres que te fale da eternidade, palerma?

  













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