sábado, julho 19, 2003
dia de aniversário...
Paulo Pedroso foi preso no dia em que fiz 41 anos. Não me esquecerei facilmente desse dia. Antes de tudo: sou daqueles que partilha aquela ideia que Abelaira uma vez escreveu na água, cito de memória, a de que " pago os meus impostos para que o Estado possa encarregar pessoas de fazerem aquilo que eu nunca seria capaz de fazer: julgar o meu semelhante".
1. Ao ler na banca dos jornais que Paulo Pedroso iria ficar até dia 31 de Janeiro preso, houve qualquer coisa de muito intimo que me aprisionou com as mesmas grades que cercam os seus passos vigiados. Devia haver a possibilidade de cada um de nós que se sente indignado com esta situação poder trocar um dia que fosse da sua liberdade para permitir que Paulo Pedroso possa apreciar a liberdade, e aí eu gostaria de entrar no sistema da prisão rotativa. Que por mais absurda que pareça não o será tanto como a sua comadre, a preventiva.
2. Se acredito ou não na inocência de Paulo Pedroso, não vem ao texto, este. E se ele é inocente ou culpado, muito menos. Nada daquilo que aqui penso sobre o processo que o deteve e que assegura a manutenção da sua prisão preventiva se altera com esse facto.
3. Dizem-me com alarvidade que eu só me indigno porque ele é uma pessoa conhecida, poderosa, mediática. Tudo adjectivos que o fragilizam ainda mais e que visam constituir uma auréola redentora e vingativa sobre a Justiça. Que há milhares de prisões preventivas e que eu nunca me preocupei com isso. Talvez. Talvez seja por ele ser uma pessoa conhecida. Por até já me ter cruzado com ele e ter dele uma excelente imagem. Talvez isso seja um ponto de partida para a solidariedade que sinto para com ele. O que em nada diminui a minha posição, pelo contrário, torna-a mais consciente das armadilhas que a emoção pode estar a pregar á minha razão.
4. Não hesito pelo menos nisto: quero Justiça. Quero Justiça para as vitimas da pedofilia. Quero Justiça para as vitimas da Justiça. E quero mais ainda, porque nascer em ditadura e ter crescido em democracia me tornou ambicioso. Quero acreditar na justiça. Quero sentir-me seguro. Quero poder confiar na justiça. O meu sufrágio pessoal e intimo sobre este caso é irredutível: eu que não sou pedófilo não me sinto mais seguro hoje do que antes de Paulo Pedroso ter sido preso. Pelo contrário. Se isto tem alguma importância para quem administra a Justiça, não sei. Mas na minha opinião devia ter. Porque não sendo o edíficio jurídico validado pelo voto, não deveria ser imune à confiança que os cidadãos nele depositam.
5. Outra coisa: se eu hoje não acredito tanto na justiça, isso deve-se unicamente à actuação de alguns daqueles que tem a missão espinhosa de a aplicar. O Procurador Geral da República. O juíz de instrução. Os investigadores que, tendo como base aquilo que veio para os jornais sobre as escutas, deixaram transparecer um abnominável amadorismo, uma tremenda falta de respeito por aquilo que está sempre no horizonte de qualquer investigação penal: a possível privação da liberdade de alguém.
6. Quanto ao Procurador da República uma ressalva. Se as suas primeiras intervenções iniciais foram desarticuladas, estranhas, confusas e com algum corporativismo a vir à flor da pele, não se preocupando tanto com aquilo que devia ser a sua preocupação fundamental, a de nos manter a confiança que devemos ao sistema judicial, a evolução do seu comportamento tem ido no sentido de, pelo menos, a restabelecer. À confiança.
5. Já o juíz Rui Teixeira, involuntariamente decerto, tem o condão de com o seu comportamento mudar a imagem que eu tenho da justiça. Já quase que a imagino uma espécie de roleta russa.
6. Primeiro foi o caso triste e lamentável das escutas telefónicas. Diz-nos o bom senso que há algo em excesso, neste caso. Não só nos alvos de escuta. Mas também nesta arrogância de agir como se tudo fosse pressionável. O Bastonário da ordem dos advogados. O Presidente da República. O Procurador Geral da República. Menos ele.
7. Como dizia MST hoje no Público, há aqui o mecanismo do double mind em relação ao comportamento de Paulo Pedroso quando soube que era citado no processo. A rapidez com que agiu no sentido de limpar o seu nome e colocar-se á disposição da justiça funcionou como uma agravante para a sua situação. Tivesse feito como o deputado Silva e talvez outra tivesse sido a sua sorte.
8. Outra vez a porra da sorte neste texto!!! Pelo meio ficou o conhecimento de que o Juíz por sua vontade tinha colocado Paulo Pedroso incomunicável. Não pôde. Haja ainda coisas que o estado policial a que chegámos, não possa fazer.
9. E se a tese da cabala a que o Partido Socialista recorreu logo aos primeiros tempos parece hoje pouco sólida, se cabala houver terá sido a dos políticos que não acautelaram com seriedade as liberdades e garantias dos cidadãos que os elegeram, o que dizer da teoria conspirativa que vive na cabeça do juíz Rui Teixeira? Segundo ele António Costa e Ferro Rodrigues, agiriam em complot com Pedroso contra o processo judicial apenas para livrarem um amigo, um dirigente do partido destes. Que amargura deve estar a passar neste momento o juíz, sabendo que os mafiosos governam as suas redes da cadeia. De cada vez que vê entrar o irmão de Paulo Pedroso, a namorada, os amigos, os colegas de partido, Rui Teixeira deve sentir-se a pior das penélopes, como se o seu ardoroso labor se pudesse desvanecer em fumo.
10. Eu, que não sou mediático, e nunca me preparei convenientemente para julgar o meu semelhante, compreendo o drama de alguém que se vê envolvido nesta situação e que, crente na sua inocência, a presunção da inocência dá-lhe esse direito, pretende contribuir para o esclarecimento da verdade, de modo a que a sua imagem, e a imagem pública para um político é um bem fundamental - por isso muitos de nós e eu próprio, sentimos a mesma solidariedade com Sá Carneiro quando em todas as praças e largos deste país a sua honestidade era, levianamente, posta em causa - seja o menos possível afectada. Podemos valorizar ou não esta atitude, mas poderemos não a compreender? Será confiável a produção de juízo de alguém que se mostra incapaz de compreender isto?
11. A ideia da incomunicabilidade é uma ideia tenebrosa, que pode bem ser articulada com a ideia anterior. Se for como nos filmes, quando alguém é detido, há a leitura dos seus direitos e nele um que se tornou célebre: "Tem o direito de ficar calado, porque tudo o que disser pode ser utilizado contra si". O Juíz Rui Teixeira perverte esta regra, invertendo-a num " Tenho o direito de o mandar calar porque tudo aquilo que disser será certamente utilizado contra mim".
12. É como se a justiça que detêm um homem e o priva de quase todos os seus direitos fosse uma entidade tão frágil que não suportasse o exercício de viver do próprio e dos que lhe estão afectos. Pior ainda: que não suportasse as consequências da presunção de inocência que atribui aos presumidos culpados. Como se dissessem, até conseguirmos provar a tua culpa podes presumir a tua inocência, mas não mais deves agir como outra coisa que não o proprietário da culpa que te atribuímos.
13. Por último a machadada final no sistema judicial: ao antecipar a manutenção da prisão preventiva, inibindo o Tribunal da Relação de ajuizar sobre os fundamentos da prisão preventiva, o Juíz Rui Teixeira deu sinais de um ardil - que na terra onde antes trabalhou e que eu conheço tão bem se designa por esperteza saloia - que demonstra que além de parecer não confiar nas figuras do Presidente da República, do Procurador Geral da República, do Bastonário da Ordem dos Advogados, também não confia nos seus pares da justiça.
14. Diz o povo, se queres ser digno de confiança, confia. Será confiável um indíviduo que leva ao a este extremo a sua desconfiança?
15. Na recta final deste já longo post: Somerset Maughan escreveu um dia em "Exame de Consciência", e novamente de memória, que "gostaria de ver nos tribunais de Old Bailey, juizes que ao lado da marreta, tivessem também um rolo de papel higiénico. Isso os lembraria de que são humanos".
16. E eu só espero que o Juíz Rui Teixeira saiba o que é a privação da liberdade, e mais do que isso, a privação da liberdade nas cadeias portuguesas. Porque entre o decretar da prisão e a concretização da mesma, pode ir um passo de gigante se quando o juíz a profere, estiver a referir-se a uma modalidade em abstracto, enquanto figura do código penal, e não à sua concretização no dia a dia de um preso preventivo nas nossas cadeias. E já que o juíz parece vencer este passo gigante com um incrível salto jurídico, só nos resta esperar que ele tenha uma consciência o mais aproximada possível do drama que lhe está inerente.
17. A tal ideia de roleta russa que referi atrás.
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