quinta-feira, novembro 20, 2003

A Mimi

Lá vem o cigarro outra vez: de facto (em solidariedade com o Levante) talvez estes arremedos de memória paquiderme tenham a ver com a renúncia que não esfumaçar também é. mas afinal, para não ser de facto outra vez, como uma associação livre, um choque em cadeia, um bater de asas de uma borboleta, também a simples menção da palavra platonismo me fez entrar numa aventurosa descida às cavernas do meu romantismo da idade infante. E não terá começado tudo por aqui: tenho registos no meu paleolítico superior sentimental de garatujos platónicos incompletos, as alunas da sexta classe da minha mãe que me estragavam com mimos, carícias e quenturas e a quem eu retribuia com estes solfejos de platonismo que por vezes duravam uma tarde, uma semana, um mês se tanto. E a primeira manifestação, daquelas que doiem, foi mesmo a Mimi. A Mimi era a filha da D. Antonieta, a irmã do , do Miguel e do Zé Carlos, uma escadinha como a dos irmãos Dalton só que, por bem aventurança, terminava não no rabugento Joe, sim na Mimi, uma rapariga que me ensinou a desadjectivar os substantivos, de tal forma ela era não o nome, mas a própria coisa em si. O assolapanço pela Mimi começou ainda na terceira classe, antes das férias grandes que, neste caso, foram insuportável tempo de separação. Tudo isto não deveria ter durado mais do que um ai se não houvesse um condimento terrível: o ciume. Um dia poderemos falar disto com mais tempo e vagar mas a verdade é esta, nada na minha vida teria sido o mesmo sem ciúme e inveja. É que havia na minha classe um rapaz, o Inácio, que era justamente admirado por todos nós por um feito que hoje, ao observar os rabiscos do meu pedrocas, poderá não parecer nada de extraordinário mas que nesta altura, para nós, foi como que um dobrar de milénio: o inácio desenhava os rostos com uma técnica que lhes dava pela primeira vez uma dimensão humana. em vez dos bonecos resultantes de uma cabeça ser construida a partir de um circulo achatado, o Inácio começava a desenhar o cabelo, fazia as orelhas, e , de perfil ou de lado, o que saía era um rosto de gente, homem ou mulher, humana gente. Não eram por isso exagerados os elogios, que começavam pela D. Antonieta, e se replicavam por toda a sala. Da parte da tarde, naquele tempo não havia colégios e infantários como há hoje, a Mimi vinha fazer-nos companhia e claro, em que carteira é que ela se sentava, não há nenhuma dúvida, este Rodin de palmo e meio era o lugar mais cobiçado da sala. Eu bem tentei também a minha sorte na arte dos riscos e rabiscos. Mas a diferença entre um original e uma cópia é profunda. E além do mais, esta luta no real indispunha-me. Não só porque já não estava a conseguir olhar o Inácio como o amigo em que sempre o tivera, também porque até a própria Mimi começava a perder qualidades de musa. Não, não podia assistir sem reagir a este desmoronar do meu mundo. A resposta foi brutal. Comecei ali mesmo, pedra sobre pedra, a construir um novo mundo. Um universo feito de alamedas enormes, triunfais. De palácios infindáveis. E onde eu, Super-Homem, passeava tranquilamente de mão dada com a minha Mimi, ao mesmo tempo que, unicamente para seu gáudio e contentamento, ia combatendo toda a sorte de assaltantes, patifes, larápios, inimigos públicos. Mimi amava-me e ao mesmo tempo o mundo, todo o universo, eu sei, era só o meu mas isso na altura era tão irrelevante, admirava-me também. Depois disso o mal, ou o bem, já estava feito. Até aí a minha vida podia ter sido tudo o que as vidas podem ser. A partir daí, como também acontece com tudo o que mexe, o campo das possibilidades ficou um pouco mais restrito. Não que se tenha diminuido. Como diz um amigo meu, é a partir destes momentos que o nosso campo dos possíveis se ilumina. A Mimi, aquela que resgatei para me ser alento e companhia, porque da outra nunca tive algum rasto, foi assim facho ardendo na noite escura. Agigantando, em nome de uma necessidade de sobrevivência num real que se nos alapa às costas corcundas, todo um outro universo, insustentável leveza da nossa humanidade balbuciante.

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