segunda-feira, dezembro 29, 2003

Levante-se o Réu...

Quando comecei a escrever com maior intencionalidade adoptei um comportamento que julgava ser digno de escrevente. Sempre que uma situação ou uma pessoa mais incomum se cruzava comigo, puxava do bloco de apontamentos mental e começava a desfiar um questionário que visava dar, simultaneamente, uma maior clareza e profundidade narrativa àquela cena ou personagem. Com o passar do tempo fui substituindo esse método pelo da recolha de textos onde essas ideias, temas, situações ou sugestões de personagens surgissem. É nessa perspectiva que sempre encarei de uma forma gulosa o "Levante-se o Réu" do Rui Cardoso Martins. Havia ali um manancial de histórias, sugestões e temas que merecerão a posteridade não só por feito próprio, também como precioso auxiliar de escrevinhadores com crises de imaginação. E nesse sentido os tempos passados por RCM no banco do Tribunal da Boa-Hora, são para mim um autêntico serviço público. O que talvez seja estranho é que tudo isto me tenha surgido quando, depois de dar uma volta entre o Jardim do Torel e o Campo dos Mártires das Pátria, ao passar ao pé do Instituto de Medicina Legal, me cruzei com três mulheres cujo negro das vestes contrastava com o vermelho congestionado das faces. O retrato era magnífico, ali entre o Almada e o Bordalo. As duas do lado cingiam-se à do meio que quase não precisava de se mexer, movida pela força concêntrica das suas companheiras carpideiras. Talvez por isso assumia por inteiro o negro carpir. "- A gente já estava habituado a vê-lo com aquele boné!" E as faces tingiram-se mais uma vez de um vermelho vivo, dorido. Aquela frase ressoava nos meus passos, na minha cabeça. Imaginava quem era ele, o homem do boné. E porque é que esta questão tinha surgido. Ocorreu-me então que talvez pudesse começar a recolher as histórias do Instituto de Medicina Legal.

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