quarta-feira, janeiro 14, 2004

O silêncio

Ao ler o que a Sofia escreveu, rompendo o seu silêncio sobre o caso da Casa Pia, eu, que já não falo sobre isto porque me parece que já falei em demasiado deste assunto, começo por me deliciar com a sua expressividade. Há nele (neste silêncio) algo que é amável. Algo que se propicia a constituir-se como objeto amoroso. E antecipo em mim uma viagem pelos bairros onde o meu trabalho de animador me levou, de uma forma ou de outra. Desde a Pedreira dos Húngaros ao Alto da Damaia, da Quinta da Calçada à Quinta das Laranjeiras ou ao Bairro da Boavista. Vejo centos de crianças com quem cresci de forma decisiva. Vejo até o pequeno Anselmo, um miudo com seis anos e meio e uma cara de anjo. Estávamos no pátio da escola, ao pé de uma pereira, a brincar com os meus fantoches e ele, era o dia mundial da árvore, pergunta-me: - Também já plantou uma árvore, Joaquim? - Não, ainda não, Anselmo. Mas já falei com elas hoje. Dei-lhes os parabéns. - Deu nada... - Dei sim. Eu costumo falar todos os dias com as flores e com as árvores. E hoje lembrei-me que elas faziam anos. - Falar com as árvores? - Não queres experimentar? - E o que é que eu digo? - Que gostas muito delas. - Como se fosse minha namorada? Sorri benevolente, sem pensar no que viria a seguir: - Sim, pode ser. Podes fazer uma declaração amorosa. Em menos de um ai o Anselmo, um puto loiro com merda na face, salta para cima da árvore e começa a cavalgar em cima dela: - G'anda vaca...ganda puta...toma...toma...- dizia gingando a anca - toma sua g'anda vaca...puta... Fiquei colado ao chão, claro. Quando contei isto à psicóloga da Equipa, começaram a vir, como um novelo, histórias de visitas regulares à barraca da mãe do Anselmo, um cubículo onde a respiração ofegante e cavernosa dos homens ficava ali, colada aos ouvidos, aos olhos do pequeno Anselmo. É também isto, estou certo, que a Sofia chama de terror. E eu gostava, mais por causa de nós mesmos que do Anselmo, que fosse possível pensar, nem digo pensar, digo esperar, que a mesma sociedade que pariu o terror, esteja agora a construir o seu antídoto. Mas não posso. No fundo daquilo a que chamo a minha lucidez, concubina de olhos lassos e cansados que se enrijece de medo sempre que atiço a escuridão para a conseguir encontrar, eu sei que esta comunidade de vózes só está a refastelar-se com uma purga para poder continuar, pelos séculos dos séculos, a aterrorizar-nos. E não é pessimismo. Pessimismo é não olhar o mal e a sua natureza de frente.

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