segunda-feira, agosto 23, 2004

Escritor de Posts

para a Sofia É já depois do esplanadar, quando me meto a caminho de casa, que começo a sentir um incrível reboliço de espirito a derrotar-me todas as conjecturas de uma existência anti-cyborg que planeei para hoje. Escrevo há mais de vinte anos e, na minha ideia, nunca escrevi uma palavra que fosse. Não sei explicar isto e no fundo é tão verdade como quando te digo que quando me sento neste lugar, e mesmo aceitando que isto não é um lugar, é uma cadeira, é um cadeira sentada em lugar nenhum deste mundo, há qualquer coisa que vai dentro de mim mobilizar o melhor e o único que tenho para dar a este mundo e que nem eu sei o que é nem nunca provavelmente o saberei e quando o descobrir, provavelmente será nada, rigorosamente nada, tão nada como este céu escuro de onde fiz casa, abrigo, remanso, solidão. Escrevo como se chorasse e tu ris-te, dizes, mas tu nunca choras, pois não, eu choro como se risse, como se gargalhasse, como se .... [Pausa. Volto novamente à ideia do dedilhar. Dedo a dedo.] ...como se o regresso àquela ideia antiga de uma festa. Eu no outro dia menti. Disse que quando meto as mãos nos bolsos e acompanho a loucura não se me queimam os dedos. E nem foi mentir. Foi fazer-me forte. A verdade é que ás vezes me queimam e, nessas alturas, quase sempre mais do que os dedos. Não é sempre, nem é para sempre mas são vezes bastantes para eu saber que tenho de viver e aprender a coabitar com a loucura que trago dentro de mim. E que não é só solidão. Antes fosse. Com a solidão aprendemos a sobreviver. A solidão mata mas não mata de vez e por isso, sabemos, nunca é de solidão que se morre. Ela vem sempre acompanhada de um outro mal, de uma outra dor, de uma outra crise. Não, não é solidão. Se fosse dizia-o. Eu aqui não minto. Posso ocultar e não me importo que me graves quando escrevo, aqui não minto. Podes até descobrir que sim, que na vigésima quarta linha cometi perjúrio. E eu poderei até saber que assim é. Mas negá-lo-ei. Negá-lo-ei sempre. Saber que venho aqui mentir tornaria a minha vida possuida de uma solidão insuportável e essa sim, fulminante. Não é solidão. É desejo de terra; de musgo; de água verdejante; do rouxinol; da andorinha; da sombra do meio dia caindo oblíquo modo sobre todos os seres em movimento; é desejo de humanidade. Há uma vida humilde na expressão de cada um e por essa expressão batemos-nos quando e enquanto escrevemos. Quando e enquanto escrevemos com humildade a vida que não conseguimos descortinar mas que assim, sentados num não-lugar, ferimos e repassamos com essa amálgama de insistência, de provir-borboleta. Chamo-a assim porque não tenho outro nome melhor para lhe dar e sempre me passou pela ideia que nessa ideia de catástrofes estava um pouco o desastre e a esperança do nosso mundo. Reparem, por favor, escrevi o nosso mundo, e poderia ter escrito apenas o mundo, e pressuposto o meu, o teu, o deles, o nosso, o vosso. Espero ter sido suficientemente claro: o nosso mundo. É como se fosse uma viagem. Não se vai só para Puket, para as Ilhas Maurícias, para Punta Cana ou para os Barbados. Vai-se também para os lugares que aqui, sentados nos nossos não-lugares, conquistamos e reduplicamos. O que que queria dizer, e talvez também a ti, é que a febre que nos escreve é insana, tende para a insanidade e só se detém na loucura. Ou na sã ideia do mundo que consegue prometer, e prometer é isso, partilhar. Não há outro compromisso entre quem escreve e o mundo onde, nele, escreve. Ou seja, não vale a pena escrever e depois pensar que não se escreveu, que se bordejou, que se passajou ou até, que se amanhou os campos. Estamos sempre entre a comunicação, a partilha e a loucura e não adianta tirar à sorte antes de lá se chegar. É um acaso, e nesse acaso, é cruel, é de uma intensa e cruel crueldade, és tu que me lês, és tu que não me conheces, mas és tu também que assenhorando-te de uma parte de mim que eu nem conheço, és tu que me levas ao lugar onde alguém descabelado lerá o meu futuro. Por isso mesmo, esta compulsão para não desabitar um lugar que não é, nunca foi; esta compulsão para viver um outro, tu, que nunca existiu. Escrevemos para escavar no escuro, no negrume da linguagem um silêncio tão grande que improfira o mundo. As palavras que escrevemos são como centos de milhões, triliões de jacintos da água multiplicando-se, re-multiplicando-se mas se as escutares bem, e não precisas de as chocalhares nem de fazeres nenhuma daqueles habilidades de pateta em que tantas vezes és pródigo, basta que te sentes diante delas e na humildade do que te contam, escutes a humildade da tua existência, e se assim fizeres, e se assim verdadeiramente fizeres, e neste verdadeiramente vai inscrito todo um programa, vais perceber que não escrevemos para encharcarmos o mundo de palavras mas para as gastarmos, para as compulsiva, obsessiva e delirantemente gastarmos, subtraindo-as ao mundo, ao nosso mundo e digo-te, seria tão verdadeiro aí, o nosso mundo, sem palavras, com todas elas gastas, subtraídas, lançadas à terra, ao negro, à escuridão da linguagem. Seria tão verdadeiro aí, o nosso mundo, desabitado de palavras e já deste conta, eu sei, choro, neste momento escrevo retornando compulsiva, obsessiva e delirantemente à água de que fui feito, à água de cujo silêncio me faço.

1 comentário:

PARTILHAS disse...

Já te "li" mais do que uma vez. Mas, não me lembro se alguma vez "partilhei" contigo, o que me apeteceu dizer. Não venho todos os dias, nem me lembro quem me redireccionou...

Podes trocar o "escreves bem", mas antes define-o, para ti que te conheces ou não, para mim, que como tu nos procuro, aqui neste lugar que como tu dizes não existe, mas onde estamos todos, nas partes que sabemos e nas outras também.

Mergulhei neste teu texto de olhos bem abertos e quase sem respirar, até ao ponto, em que te leio e me vejo também a mim. Não, não minto. Aqui não minto mesmo. Mesmo, que na tua 24ªlinha eu me contradiga é o que senti quando a "dedilhei"... Gostei, talvez escrevas tão mal, mas tão mal (estou a brincar), que seja fácil para os loucos lerem-te.

Uma parte do nosso Eu, pode ser esta. A loucura da comunicação connosco.