segunda-feira, setembro 27, 2004

Caim e Abel

Sempre esta mania de não olharmos para as coisas, respondeu Hadji quando eu estremeci a boca de espanto por uma guerra tão fraticida, o cúmulo do horror acontecer assim, entre irmãos. - Se reparares - respondeu ele - as guerras mais terríveis são sempre entre irmãos. E levou o dedo pelo mapa mundi comprovando a sentença. Citaste também os desacatos ibéricos. E falaste de quando a guerra chegou a Sarajevo. - Eu era muito inconsciente. Escrevia e tomava posições públicas com alguma desfaçatez, o meu mundo era o da arte, não tinha problemas, não tinha até aí tido problemas de maior. Um dia na praça onde era a nossa casa estava rodeada de brindados e tanques. A minha irmã chamou-me à janela. Disse-me, "estás a ver aqueles tanques ali." Estava, era impossível não vê-los. "Pois agora falta pouco para que comecem a disparar contra aqueles ali". Impossível, isso não vai acontecer, isso não vai acontecer. Eu tinha a guerra ali à porta da minha casa e continuava a acreditar que a paz, o entendimento era possível. Nesta Jugoslávia dividida a minha família era um espelho da fragmentação nacional. Quando nos punhamos à mesa, a Sérvia, a Croácia e a Bósnia estavam ali, sentadas connosco. A minha irmã, interrompeu-me. " Hadji, não tarda eles vão começar a disparar uns contra os outros. E agora o importante não é saberes se vão disparar ou não. O importante é que percebas que quando eles começarem a disparar tu tens de escolher. Tens de escolher entre uns e os outros. E eu não poderei mais garantir a tua segurança e a tua própria vida se não tomares a opção certa." Foi aí que num sobressalto reuni a minha mulher e os meus filhos e fugimos para Belgrado, rumo à Europa. Não podia escolher entre Caim e Abel.

1 comentário:

Anónimo disse...

Cinzento, este teu cenário! Não na escrita, na luz, nos rostos, nas almas e nas escolhas que tantos são forçados a fazer, sem querer...