terça-feira, outubro 12, 2004

O poeta é um fingidor...

Não sei se vos acontece, a mim sucede-me amiúde: há momentos muito raros em que há uma clarividência sobre o que sou, o que faço, o que penso, e nesses momentos em que a luz se me impõe penso que essa claridade vai ficar comigo para sempre, a iluminar o resto da minha vida. Vã ilusão. Meio segundo depois já uma rabanada de vento me leva para o maior negrume perceptivo e eu fico, como sempre, e como a maior parte de vós, presumo, a constituir-me por somas de intuição, agora intuio isto, outro tanto logo mais à frente, e cada intuição é ao mesmo tempo consequência da que a antecedeu. Por exemplo, o resto deste post liga-se com o que escrevi aqui, no Último Post Falso, falava de me expôr menos: "Há duas maneiras de o fazer. Uma é deixar de escrever aqui algo que tenha a ver comigo no sentido mais intimista da prosa que fui instalando neste lugar. A outra é continuar a escrever como sempre fiz e depois, no final do texto, dizer de mim para mim mesmo, isto é tudo falso, não tem nada a ver comigo, é tudo ficção pura. Opto pela segunda hipótese. Prefiro mentir a mim próprio do que àqueles que me lêem." Por mais interessante que possa ter sido esta ideia de alguém que prefere mentir a si próprio do que aos outros, contrariando aquela ideia de que a nossa consciência é o último reduto da nossa conivência com o real, não passava de um efeito literário retirado dos canhestros do curso livre de escrita criativa que tive com o Zink. A verdade já a tinha escrito, como sempre, o poeta, a anos-luz de distância: "...finge que é dor a dor que deveras sente." Há uma dor universal, anónima, vazia, que vai sendo reocupada por cada um de nós, viajantes na passerele dos vivos. Segundo as condições do acaso ou do destino. Mas depois desse processo de reocupação, ou para além dele, e creio que apenas para nós que nos circunscrevemos a uma humana condição, há também uma reinvenção da dor. Todos nós a reinventamos. Em papiro, em pixels, em sonhos, fantasias, pesadelos ou apenas em nãos, todos nós temos algumas acções que só podem ser legíveis e compreensíveis à luz do desígnio: em nome da ficção. Aquela mulher por exemplo, a da boca envergonhada, de que falei em Uma vida humilde, rindo-se das pilhérias de um gajo encostado ao balcão, naquele momento em que sorria, sonhava, fantasiava, mais ou menos libidinosamente almejava a uma princesa e a um príncipe que a faziam evadir por momentos daquele cárcere onde se encontrava. Abel Neves, há uns anos, na testa de uma comunicação, num daqueles momentos de clarividência poética que tantas vezes lhe calha, escreveu, esse título que é todo um programa de vida: "A ficção tira os pecados do mundo?" Sei do que falo, já tive o privilégio de viver num palco outros que não eu. Na escrita a única diferença é que o palco é esse diferimento entre o momento em que me exalto e esse outro em que a leitura e a hermenêutica me despertam de um sono profundo. Quando escrevo, mesmo que diga eu, nunca serei eu. Por isso mesmo as coisas parecendo as mesmas, não estão mesmificadas, cristalizadas, na realidade onde de facto aconteceram. Se der mais jeito deixam, sem pré-aviso nem condição ou protocolo algum, de serem essas e passam a ser outras. Mesmo que eu seja mais eu porque escrevo, não serei nunca eu quando escrevo eu. Senão já teria morrido mil vezes. Escrevo fim sem nunca ambicionar escrever o meu próprio fim. E quem diz fim diz outra coisa qualquer. Ás vezes posso até conseguir escrever coisas que tocam na alma de um transeunte e que bom uma alma ser tocada assim, por palavras, e ainda melhor se a alma não deixar de sentir nenhum instante de felicidade por saber que foi tocada apenas por palavras, não por quem as escreveu. Insisto, há uma acto de dissidência na escrita, para um lado a mão que escreve, para o outro a palavra que a mão escreve. E isso é tanto no mais sagrado dos livros como no mais profano dos blogues. Sem isso aliás não haveria vida, ou pelo menos vida como ainda hoje a concebemos.

2 comentários:

Ferran Moreno disse...

Falei do fingimento alguma vez no meu blog, ainda que com menor inteligência. Utilizei uma metáfora de que gosto imenso, a metáfora da máscara: o blog é uma máscara de nós próprios, e os posts pequenas máscaras com que tentamos disfarçar os nossos sentimentos e emoções. Não mentimos, porém; mas por meio da escrita moderamos a intensidade da nossa dor, da nossa alegria, da nossa tristeza. Como diz o poeta, que já citaste, fingimos que é dor a dor que sentimos.

JPN disse...

sim, moderamos ou aumentamos, por vezes. mas é sempre outra dor e essencialmente, é uma dor bem mais suportável porque fomos nós que a recriámos. falas da ideia da máscara e é engraçado, também eu a utilizo recorrentemente para, como tu, defender o valor de verdade que por aqui anda. as máscaras têm a função de revelar, não de ocultar. ou se quisermos, num jogo de esconde-esconde, o que é que eu mostro agora, o que é que eu revelo agora, levam o individuo a zonas de revelação mais profunda. veja-se os mecanismos da voz distorcida, das sombras na tv. servem para quê? para esconder o individuo? ou para, ocultando a sua face social, revelá-lo com maior profundidade? é uma discussão longa, mas eu sento-me a esse lado dos que, como tu, defendem a verdade que por aqui passa. abç