terça-feira, outubro 12, 2004

Paisagem Interior

É já a terceira noite que me abeiro do varandim da Esplanada da Graça com a mesma sensação de que estou fora da cidade. Lá ao fundo as sombras, as silhuetas de uma vida que ainda escorre pelas ruelas. A luz amarela tépida. Tudo é no de lá. Chega a ser curioso como a perspectiva muda a percepção do horizonte. A minha atenção já não vai para a encosta onde se erguem as ruínas do Convento do Carmo, mas sim para o rio. Parece mais escavado, maior. Sinto-me só mas já não estou em saldos. Hoje não falei com ninguém. Disse algumas palavras ao homem do taxi, troquei as palavras do costume na pastelaria, tive de fazer um ou dois telefonemas e de tratar de assuntos, e fi-lo com palavras. Mas chego ao fim do dia com a sensação de que não falei verdadeiramente com ninguém. De que as palavras que disse não foram ditas e que se o foram não precisavam de ser ditas. Quando entrevistei Lecoq e quando lhe falei do modo como ele ligava a mimíca com a oralidade, ele respondeu-me que temos de dizer ainda algumas palavras para conseguir chegar lá, à terra do silêncio. Se for assim, estou quase lá na terra do silêncio e se é verdade mesmo que ensurdeces então é contigo que me encontrarei um dia nesse descampado donde o verbo se desaloja. Chego ao quiosque e o rapaz logo que me vê já leva a mão ao Público, sigo, entro no táxi, três palavras, bom dia, já percebi que a falta desta pode levar-nos imprevistamente a desembocarmos num ror delas, e Trindade. Na leitaria só abano a cabeça enquanto ela confirma a receita matinal. Mais um bom dia pelas várias almas por quem vou passando e com meia dúzia de palavras me gasto até final. Saio para a rua, o Chiado à tardinha sabe-me bem, olho a Brasileira, Fernando Pessoa marca o terreno, piro-me, vou até ao Café do Chiado. A empregada, cubana, já sorri quando me vê. É o momento mais bonito da minha vida, do meu dia, quando ela sorri. Vou para lho confessar, só consigo balbuciar, um cheesecake. Com ice tee?, pergunta ela. Abano a cabeça com os olhos piegas, contando-lhe o melhor que posso que o meu verão acabou: - uma meia de leite. Ela inteira-se do meu drama e parte, solidária. E assim gasto os meus dias sem dizer nada a ninguém, em nenhures. Sou quase um fantasma. Qualquer dia deixo de pagar bilhete no eléctrico. Sento-me e pronto. Ninguém dará pela minha presença. A felicidade deve ser eu próprio esquecer-me dela. Imagem: Árvore da Vida, de Yann Arthus-Bertrand, em A Terra Vista do Céu, no Terreiro do Paço

6 comentários:

Carla de Elsinore disse...

belo post , meu amigo, belo post

PARTILHAS disse...

Podes não dar som às tuas palavras, mas não é dificil dar-lhes imagens, formas, cheiros e muitos sons, daqui deste lado. Olho um écran e acompanho-te nesse percurso diário. Com mais palavras ditas, com muito mais palavras ditas e com sorrisos e com conversas que não consigo resistir a iniciar.
Tenho uma sorte danada com os taxistas. São sempre pessoas com estórias muito engraçadas para Partilhar...
Não consigo deixar de sorrir e dizer; "Olá D.Fátima Bom Dia" e despedir-me sempre com um "Até logo, resto de bom dia". E sabes, à noite tenho a certeza que o meu cumprimento é importante e o meu sorriso e o tratar as pessoas pelo nome... Posso não dizer nada que ensine alguém, mas o meu papel, está representado. Beijinhos Dia Bom JPN.

Ferran Moreno disse...

Fico sem palavras. A sensação é conhecida, familiar: experimentei-a muitas vezes. Afinal, não somos todos sombras de nós próprios a passar pela vida?

Percebi tristeza no post e não pude fugir dela no comentário.

Anónimo disse...

... e nesses momentos, as palavras, as palavras interiores que se dizem ao longo do dia, ganham maior peso...
lu.

Anónimo disse...

Gostei imenso deste texto. Belíssimo, belo título!
Alguém

Anónimo disse...

Gostei muito. Ando sempre assim.
Ninguém