domingo, outubro 24, 2004
Todos os dias
Sou o gajo das mudanças. Levanto-me cedo, ainda o relógio hesita em chegar às seis da matina. Todos os dias há alguém que se muda de casa. Ou de sitio. Encontramo-nos ali ao cimo da Torre dos Clérigos, na tasca do Anselmo. Quer dizer, na tasca que era dele. No dia em que o FCP ganhou o último campeonato o coração deixou de bombar e o gajo foi-se. Primeiro viu o jogo e depois a morte viu-o a ele. Chamou-o. Não foi preciso berrar, o Anselmo sempre se maltratou muito. O cigarro, os copos, o putedo. É o filho dele que nos serve agora. Os pastelinhos de bacalhau, o copinho tinto. Fica mesmo à beira dos Clérigos. Se descessemos íamos direitos às ruas das gajas, mas de manhã, nem vê-las. Todos os dias há alguém que se muda de casa. Ontem uma chavala engenheira olhou para mim e disse, "se não fosse você não conseguia mudar de casa hoje". Podem achar que é falta de humildade de um gajo que não tem mais estudos do que aqueles que realmente teve. Que tem de pôr umas luvas de napa reforçada para conseguir fazer o seu dever. Carago, quando a gaja disse aquilo vieram-me as lágrimas aos olhos. Ainda hoje hei-de passar pelo cemitério de agramonte a contar à minha mãe. Maezinha, trabalho numa área estratégica do nosso mundo. Se eu adormecer mais um pouco há gente que fica agarrada ao chão. Se eu ficar mais um pouco na cama a sonhar com a sharon stone, há gente que não consegue mudar a sua vida, a sua casa. Não me estou a armar em esperto: sem mim o mundo ficava todos os dias um pouco mais no mesmo sitio.
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1 comentário:
Achei tão linda esta história.
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