terça-feira, novembro 30, 2004

O amor é tão improvável aos vinte anos...

como aos trinta, aos quarenta, concluí eu ontem nas horas finais do ensaio, enquanto esperávamos por mais uma tentativa de colocar o projector a funcionar. O tema era, entre ais, suspiros e gestos de bailarina de uma das actrizes, o amor. Não poderia ter havido final mais perfeito para o ensaio de ontem, lembro-me de ter pensado. Sem saber que para mim seria um falso final já que prolongaria o desfecho até ao 2047, visto em sessão tardia. Num anfiteatro, inicialmente espalhadas pelo espaço nos locais correspondentes às marcações que tinham atribuído aos seus personagens, começaram a surgir as vozes dos vinte anos abertos sobre os baldios do amor, do namoro, da experiência. Estavam todas tão entretidas a espelharem-se na conversa que nem repararam no meu embevecimento. É um privilégio poder estar ali, assim, sem impedir o fluir tranquilo desta camaradagem com que se vão emaranhando nos nós que atarão as suas vidas. Já me tinha apercebido disso comigo mesmo: as nossas vidas decidem-se tantas e tantas vezes quando não sabemos, quando não podemos saber, a força decisória dos nossos gestos. Falaram dos príncipes encantados, dos homens perfeitos, da possibilidade de os encontrar. A certa altura viraram-se para mim. Queriam saber como era vinte anos depois. Fui o mais sincero que pude. Estava num cadeirão de pele, quando as vi a saltitarem pelas histórias dos seus dias pressenti que também me chegaria a mim, tinha-me posto o mais confortável que pude. Confessei-lhes que, muito antes pelo contrário, nunca deixamos esse tema evaporar-se das nossas vidas. Aliás, e já nem sei se o disse se o pensei, toda a nossa vida que vale a pena um dia contar é aquela que é vivida na preparação desse encontro com o amor. Mas ainda procura a mulher perfeita?, perguntou uma, espantada pela durabilidade desta ilusão. Responder a esta pergunta parece mais fácil do que é. Num relance entrevemos toda a nossa vida que não foi, que falhou, que fracassou e essa é, muitas vezes, toda a nossa vida. Defendi-me o melhor que pude, que sim, com uma pequena diferença: com o tempo passamos a ter na linha do horizonte mais a relação perfeita do que a mulher ou o homem perfeitos. A nossa moça-com-o-coração-aos-saltos não estava contente. Ela aguentaria ainda um pouco mais esta trepidação cardíaca mas precisava de saber que não seria para sempre e até, que iria deixar de o ser com o tempo. Insistiu: - Joaquim, esta coisa de uma pessoa se entregar assim tanto a esta paixão é coisa da idade, não é? Com o passar do tempos serei mais racional, menos impulsiva, não é? Respondi-lhe: - Provavelmente não. Agora é que toda tu és razão e discurso.Todo o viver é esse trabalho de nos entregarmos cada vez mais e melhor. Talvez não tenha sido totalmente honesto, mas fui verdadeiro e isso permitiu-me sair em alta comigo mesmo. O que, tendo em conta o adiantado da hora e da minha idade, é piedoso fim.

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3 comentários:

JPN disse...

Parece-me que isso tem a ver com a atitude pessoal. Eu vejo as coisas de maneira diferente, rs. Tenho saudades dos amores que ainda não amei, pergunto-me, irei conseguir desta vez ir um pouco mais além. Se do amor só tivesse a ideia pelo que já fui capaz de amar, amar nunca justificaria a vida.
Havia um grande mestre de teatro que dizia aos seus actores, " vocês vão trabalhar arduamente para serem tão expontâneos e impulsivos como as crianças e só assim se aproximarão dos actores geniais que elas são".
Também nós temos de seguir, teimosamente, para de erro em erro nos aproximarmos de uma ideia de amor que melhor fale do nosso mundo. E talvez no fim da estrada venhamos a descobrir que nunca amámos, que nunca fomos amados, pelo menos nesse amor que o fim do caminho nos revelou.
Talvez.

Anónimo disse...

Saudades do futuro? Pois não sei que diga. Há coisas que são incomentáveis pois partilho tanto certos estados de espírito, de ser, lidos e sentidos através deste filtro que não sabemos se filtra bem se mal, que prefiro as mais das vezes sentar-me caladinha, na plateia, sem deixar rasto, sem nada para dizer e com tanto cá dentro. Demais. Sonhos, desencantos, amores felizes. Se morresse hoje diria que teria valido a pena a vida na parte do amor, pelos amores que vivi, poucos mas intensos e felizes. E depois dolorosamente perdidos nos desencontros e desencantos porque se calhar é assim mesmo e nada pode ser para sempre (mas eu queria que algo um dia fosse para sempre, naturalmente para sempre) Algures cá dentro há no entanto o desejo da perfeição, essa que, como um pássaro, deixei fugir entre os meus dedos vazios, e vazios se calhar estiverem sempre e talvez o pássaro não fosse senão ilusão e projecção dos ideais. Como disse o A.L. Antunes: somos 4 na cama, 2 pessoas e 2 projecções do outro.
Concordo que o cerne da questão talvez não seja encontrar o homem, a mulher perfeita, mas transferir o desejo para uma relação quase-perfeita. Perfeita é a arte, a beleza, a poesia, a música. Somos humanos, queres algo mais imperfeito? Mas vale a pena sonhar com a relação perfeita. valerá? Há que viver. E olha, isto são só palavras mesmo. Às vezes vir aqui dói. V.

textura disse...

Também lá estive. E foi um momento de verdeiro estar e levar para casa. E isso de não aprendermos com a experiência dos outros é treta. Eu levo para casa o que o Joaquim nos diz, não como interiorização automática, mas como deixa para pensar. Porque é de todo credível, o Joaquim. Por ter tantas dúvidas é que é credível. Não cientifica as emoções e é bom saber que passados vinte anos é assim.