quinta-feira, novembro 18, 2004
Orgãos internos resolvem impugnar o amor *
Primeiro foi o fígado. Sempre imerso em taxas de alcoolemia nunca inferiores a um grau de lividez considerável - diziam os médicos que nunca tinham visto um fígado tão caucasiano -, sem que daí tenha vindo qualquer entrave ao seu normal funcionamento, resolveu parar de repente. Inchou, inchou, e ali ficou, preso à vida por vasos sanguíneos vergados àquele peso morto.
Os pulmões, com o seu característico ar superior, exalaram um suspiro de resignação e pensaram: «Bonito. Agora temos nós que limpar este gajo das impurezas todas». Trabalharam, trabalharam, meteram recibos de horas extraordinárias, a pleura chorou de cansaço, organizaram-se manifestações de desagravo para com as vias nasais. Passada uma semana, ao som da Internacional Socialista, os pulmões paralisaram na posição dilatada.
O coração ficou baralhado. Sentia-se responsável por esta confusão. Mas só em parte - o resto da culpa atribuía-a ao cérebro. Embora não tivesse a certeza - é da natureza do coração estar sempre indeciso e palpitante em relação a todas as coisas. Como se fossem sempre complexas e interessantes, e simples nestes seus dois atributos. Mas começou a sentir-se sozinho.
O cérebro não lhe respondia, imerso nos pensamentos do costume, ensimesmado sobre qual o melhor impulso que devia transmitir a esse mesmo coração. O pâncreas... bom, o pâncreas já era há muito uma sombra de si mesmo, todos os outros orgãos o apelidavam de preguiçoso, incrédulos com a explicação de que tinha sido atingido pela diabetes. Ouvidos, nariz, olhos... nem pensar, com essa mania própria dos orgãos externos, sempre no parapeito da vida a ver as entranhas dos outros. O coração estava sozinho.
O coração palpitou e escutou o seu próprio eco.
Uma...
Duas vezes...
Quando acordou já pertencia a outra pessoa. Por artes que transcendem a transplantação clínica.
* Mote gentilmente cedido por Rutativa Flaviana, da Ribeira dos Milagres.
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2 comentários:
:)
os meus orgãos externos ainda não tinham dado por este post. momento de grande inspiração. parabéns!
nico
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