quarta-feira, novembro 24, 2004

Tão guerreiros no nosso coração.

A Natureza do Mal chama a atenção para a entrevista que David Grossman concedeu a Alexandra Lucas Coelho. Recomendo-a com a mesma vivacidade do Luís. É uma entrevista terrível. O lugar, Jerusalém, exerce uma forte pressão sobre a conversa. O lugar em devir, o lugar que há uns anos seria loucura pressupôr, esta terra prometida sempre a fugir-lhes dos dedos, agora dos dedos próprios, o lugar como espaço da razão quase impossível. Um lugar que traz palavras fortes, explosivas. As palavras de Grossman explodem contra a violência e a estupidez do homem : "Todo o tempo oscilamos entre catástrofe, tragédia e milagre, todo o tempo. E eu quero alguma normalidade. Viver num lugar sem inimigo, sem contarmos o nascimento dos nossos filhos desde a última guerra." Uma lucidez tão desesperante, porque tão simples: "há simetria numa coisa: na capacidade de cada lado tornar a vida do outro amarga. Israel é um superpoder, temos uma centena de bombas atómicas algures, e no entanto, ficamos aterrorizados quando os nossos filhos vão para a rua. Portanto, de certa forma o sentimento de estar cercado é comum". Haverá ódio e ódio e mais ódio entre Israel e a Palestina. Mas como é tranquilizador para aquilo que sonhamos como a sobrevivência do nosso mundo, saber que uma das luzes acesas na noite de Jerusalém é a de um homem de paz: "Combatemos uma guerra que em parte se tornou irrelevante. Continuamos a fazê-lo porque somos manipulados por extremistas, por visões mundiais de líderes que cristalizaram e não vêem que há outras possibilidades entre nós e os palestinianos, entre nós e toda a região." O escritor. E mais uma vez as suas palavras cortam fundo: "Nos últimos anos, insisti em escrever romances que tinham muito pouco a ver com a actualidade, por sentir que tanta da nossa intimidade foi confiscada pela violência, pelo medo, pela necessidade de estar todo o tempo em alerta. Paga-se um grande preço por viver numa zona assim. Se nunca temos a certeza de que os nossos filhos vão voltar à noite, isso influencia tudo. Estamos tão tensos sempre, tão guerreiros no nosso coração." "A cultura da morte confiscou a vida. Tempo, energia, sangue, quotidiano devorados por "uma guerra que se tornou irrelevante", é este o mundo de que fala numa entrevista singular. David Grossman dá-se sempre na perspectiva do testemunho. É uma escrita urgente, na urgência, que urgencia o mundo. Cada vez que ouço palavras destas, palavras com a brutalidade e o terror da guerra dentro dos seus sons, dos seus fonemas, apetece-me parar de escrever. Só seria digno da escrita se a tornasse urgente, na urgência de defender o mundo, o nosso mundo. E isso, nunca o conseguirei. Mas há que prosseguir com a indignidade. A única coisa que podemos fazer, e digo que podemos porque reconheço aqui neste nosso mundo de palavras alguns que me acompanham nesta amargura, é curvarmo-nos, de humildes.

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