sexta-feira, dezembro 31, 2004
As suas mãos
Não escrevemos com as palavras com que escrevemos mas com as escolhas que tomamos como nossas. Ideia que, de mim para mim, me chegou em itálico. Como se tu ou ele m'a tivessem segredado. Aprecio o silêncio com que a revelação me chega. Haveria poema, se antes tivera havido poeta. O poema faz o poeta na mesma matéria argilosa onde o poeta constrói o seu poema. Na mesma não. Parece igual quando a comunhão é perfeita, quando o poema irrompe naturalmente do braço que o fez. Mas nem sempre isso acontece. Por vezes o poema, ou o poeta, chegam tarde, digamos, tarde de mais. E aí a escolha levanta-se branca, negra. O poema sem poeta? O poeta sem poema? Em nome da vida que levamos, escolheria o poeta. Mas nova dúvida? A vida que levamos sobreviveria sem poema, sem poesia? Novamente me confundo, e é voluntáriamente que me ludribio. Aqui haveria poema (e poeta) se antes tivera havido poesia. De seguro tenho apenas que a vida que levamos, àvida de desejo, e fantasia e sonho, não sobreviveria sem poesia. E mesmo sendo incréu de algum religião ou vício colectivo do espirito devo perguntar: como chegará a nós esta poesia essencial da vida? Através do poema, certo, mas há também na expressão de todos os tempos e mundos quem nos tenha feito sentir que tudo o que nos cerca pode ser poema se antes, nos nossos olhos e sentidos ainda não calcinados, tiver havido poesia. E então se tudo pode ser poema e em tudo residir a poesia, se a poesia não é algo que nos chega mas à qual arribamos, qual o lugar do poeta neste mundo? Não falo apenas do poeta, daquele que se descobre na descoberta da poesia originária deste mundo, esse poderemos ser todos nós. Falo agora, e apenas agora, exclusivamente, do poeta-poeta. Aquele que talhou as suas próprias mãos à medida do objecto que os seus gestos visam, e são visionários estes gestos. Não interessa o material, o objecto, apenas as mãos. Eis a resposta, e a resposta não a encontraremos no poema, nem no poeta nem na poesia, sim nestas mãos, as suas mãos. Não escrevemos com as palavras com que escrevemos mas com as escolhas que tomamos como nossas, começou este texto tão desinspirado quanto teimoso com que me pretendo despedir do ano velho. Olhemos as mãos do poeta escavadas na renúncia, no compromisso, no afecto chão e altaneiro por este mundo, indaguemos aí exemplo e luz ou apenas, a escuridão que nos falta. Mas procuremos nelas, nas mãos verdadeiras do poeta a outra vida que buscamos.
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1 comentário:
Nunca será des-inspiração a razão da sua escrita. É antes a comunhão perfeita entre a outra vida que se busca e a expressão de uma poeticidade interior que o consome.
Resta o retorno incessante do leitor ao seu respirar.
nico
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