quinta-feira, dezembro 09, 2004

A Mão no Tempo

Em tudo me falta tempo. Sei também o excesso de tempo que significa esta ausência de tempo. É cruel dizê-lo, mas percebemos um dia, quando o tempo nos faz verdadeira falta, que esta proverbial falta de tempo que exibiamos sempre como justificativo para tudo e para todos, apenas significou esbanjamento do mesmo. Chego agora ao tempo pela mão quente de uma criança, o meu filho, e ainda pela sua toco na mão fria, gélida, do meu pai, já morto, nunca me esquecerei do arrepio que senti quando lhe toquei nos dedos, o toque da sua pele e da minha provocaram um sobressalto sanguíneo, senti um estremecimento naquele corpo inerte. Eu já sabia que o último olhar e o último toque são em vida, a vida me tinha ensinado que nada de vale fazermos o que já não pode ser feito mas no caso do meu pai fiz ouvidos moucos ao ensinamento. Queria tanto estar com ele mais um poucochinho que fosse. Eu amava-o como uma árvore ama as suas raízes, os seus ramos apontados para o céu, não havia alguma distância entre mim e ele, só quando estávamos juntos. Ainda me lembro dele a ir ter comigo ao meu quarto, já sabia que a morte o vinha buscar, deitou-se na cama, não sabia quando, ainda tentou um último negoceio, talvez ela o pudesse ouvir e condoer-se: - "Quim, eu não me importo de morrer mas não me importava nada que fosse depois." * Depois de quê, nunca lhe perguntei, seria cruel. Depois de ter publicado o livro que nunca publicou, aquele que escreveu nos ouvidos do António, do Mário ou do Pio, os seus melhores amigos, narrando o corte que fez com a vida de sacerdote que nunca elegeu? Depois de ter mais uma vez ido beber água às Portelinhas? Ou de ter ido saborear um vinho maduro em casa da Ti Riquinha, temperado com longas conversas à lareira? É cruel, desumana a nossa vida, a vida que levamos e a vida que nos leva, no entanto é quase sempre verdade que o tempo que assim nos dessem seria gasto a lamuriarmo-nos e pedindo, como o meu pequeno filho e o meu pai grande, o meu pai no céu, mais um poucochinho, um niquinho, depois. Somos todos crianças, nem sempre inocentes, mas sempre crianças diante da D. Morte. __________________________________________ *Exactamente estas as palavras que também ouvi à Tia Miséria quando a entrevistei para a Revista o ACTOR.

3 comentários:

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Dás ainda a mão ao teu pai. mão forte. de memória e tanta ternura.

Anónimo disse...

E nós, os que a vida presenteia com pai e filho, precisamos de te ler, para perceber a magia, que este depois, encerra Hoje. Obrigada

Anónimo disse...

Não me apercebi se foste tu quem escreveu o texto nem interessa, não para mim agora. O que me despoletou esta água que desce sobre o rosto foi absolutamente tudo o que li e ainda mais isto: " Eu já sabia que o último olhar e o último toque são em vida ".
E vem-me à memória a minha avó, a pessoas mais próxima que me morreu, há 4 anos. Soube-o às 8 da manhã. Liga-me a minha irmã: P., a avó...
Vesti-me à pressa, fui para o lar, para onde teve de ir 2 anos antes e onde a vistávamos todos os dias e perguntei
Foi a que horas? Ela sofreu?...
Foi há pouco tempo enquanto dormia.
Quero ir vê-la.
Naõ pode ser, lamento. Faz parte das regras da casa não deixarmos os familiares verem os seus mortos antes de os prepararmos (prepararem para quê?).
Eu quero ver a minha avó. Quero e não me pode impedir.
...Promete que vai estar calma?
Sim.
Fui em passo rápido e de rosto frio, boca cerrada, tudo cá dentro
Avó...
Parecia dormir. Ainda estava quente, como no dia anterior em que em alegre e de olhos brilhantes, tão sorridente cada vez que um de nós chegava, aquecera entre as suas as minhas mãos frias (e coração quente amor para sempre, não é vó?...).
Quentinha e a dormir. Não sofreu, dizem que não, mas a gente sabe lá; e saberemos se ela se apercebeu do instante e se despediu de nós, rezando por nós, com saudades do meu avô e já saudades de nós, dividida e consciente da efemeridade da vida, tanta coisa passada, perdeu o pai aos 9 anos, perdeu dois filhos acabados de nascer, perdeu o meu avô aos 50 anos, lutadora a vida toda, lúcida até ao fim, a vida começa em milagre e termina num mistério.
Não sei onde arranjei forças para querer ser eu a ir escolher o caixão de entre uma pilha deles amontoadas até ao tecto no armazém da funerária. Quis poupar o meu pai, filho único, ele que aos 26 anos perdeu o seu amado pai e que no ano seguinte viu nascer uma filha, eu, a redenção ou a passagem de testemunho.
Quando o corpo da minha avó esfriou, toquei-o mais tarde, senti isntintivamente que ela já não habitava ali e isso deu-me o secreto conforto de saber que a terra nunca a possuiria, pois não era para lá que ela ia, só o corpo.
Sou parecida com a minha avó em certos impulsos, refilices e sensibilidades. Só me falta talvez a imensa força com que atravessou a vida e pensava na morte. Ou talvez e cada vez mais sinta que me vou parecendo mais com ela, até na força, que, essa, construo cada dia, feita também da minha fragilidade de vidro grosso e transparente.
E também sou parecida com ela fisicamente, o nariz saiu igual ao dela, arrebitado.
Choro, em blog alheio, de dores que são só minhas.
Só que escrevendo aqui sei que a este post não virei tão depressa ou virei quando tiver saudades do que escrevi. Agora, estou calma, catarse feita, tantas catarses do sofrimentos fiz e quantas mais farei, mas isso também significa que as pessoas e as coisas por que passámos não nos morreram.P