domingo, dezembro 05, 2004

Os dias inteiros

Estávamos à espera de "Encenar Abel Neves", conversa com Álvaro Correia, António Augusto Barros, Silvia Brito e o próprio Abel Neves. Olga Pombo pousou o livro que estava a ler e chama-me a atenção para um erro de palmatória na revisão do texto. Trata-se da troca de um a ver por um haver. Não devia ser um problema de tradução, pensava. Provavelmente seria de revisão. Porque eles não procuram o sentido, apenas a palavra isolada. E para me elucidar contou uma história, passada há muitos anos, quando tinha ido ao antigo SNI, onde permaneciam os serviços de revisão de textos oficiais, como por exemplo os Diários da República. Era um lugar um pouco kafkiano onde dezenas de pessoas liam textos, detrás para a frente. E até se compreende. Ao ler-se o texto da forma como ele foi escrito incorre-se muitas vezes no erro que estava na base da escrita, disse ela. O que mais me impressionou foi que eles passavam os dias inteiros a ler e não podiam verdadeiramente ler o que liam. Ela voltou para o seu livro e eu fiquei a pensar nestes revisores, pareciam-me um exército que passava os dias inteiros diante de textos que não podiam ler. Como é que seriam os seus sonhos? Como é que se sonha quando se vê um livro no sentido contrário ao que foi escrito? Há um livro decerto a impor-se, divergente daquele que o seu autor criou. Milhares e milhares de palavras mesmo que resultantes de um esforço de isolá-las, como se fossem ilhas, têm a força de uma arquipélago. Como é que sonham os revisores?, essa é a pergunta que me intriga. Descobrir isso, é descobrir um pouco do sentido da vida. Da nossa vida, aqueles que quase sempre a lemos do fim para o principio. Começamos pela morte, pelo medo de morrer, instalamos aí o verdadeiro principio regulador de toda a existência, e vamos desnascendo até que um dia, já mortos, tornamos a morrer. Ou, quem sabe, a nascer. Como é que sonham aqueles que lêem o livro do fim para o inicio, que conjugam as palavras desarticuladas do seu contexto? Palavras tidas assim como verdadeiros fragmentos. A pergunta parece pueril. De facto dir-se-ía um exercício poético deduzir que eles têm um sentido no lido. Quando todo o seu investimento se manifesta no não serem afectados pelos sentidos do texto. Mas não o é. Todos nós sabemos que a ideia de humano não pode ser pronunciada sem ser contaminada por um sentido. Como sempre, em todos os lugares da nossa vida, o revisor que deslê o texto, percorre-o num sentido que é em si mesmo gerador de múltiplas indicações. A palavra fora da seu sentido continua a existir como objecto e, eis a ironia de tudo isto, o objecto não sobrevive sem essa irrequietude de se propor em sentido. Que sentido será esse que ocupará a cabeça de um revisor? Talvez o eco daquelas milhares de palavras, milhares, milhões de palavras, criando sonoridades, ressonâncias. A cabeça de um revisor deve ser uma enorme caixa de reverberação. O seus sonhos serão talvez passados em lugares inóspitos, paisagens de Dali. E as suas vidas? Quando chegam a casa olham a mulher como? A filha bate com a porta, vem mal disposta, farta de nunca qualquer coisa. Como é que ele a olha? Pelo fim? Pelo principio? E já cansado vai para a cama, pensando em repousar. Consegue? É por isso inteira a minha curiosidade, como é que sonham aqueles que lêem o livro do fim para o inicio, que conjugam as palavras desarticuladas do seu contexto?

1 comentário:

Anónimo disse...

Eis como um pequeno texto se torna maior que ele mesmo, e mereceria a sua reimpressão num livro ainda maior, com direitos de autor.
Quanto à questão final, poderemos imaginar, jpn, que se trata de uma escrita milenar, como a dos árabes, por exemplo, e tudo volta a fazer sentido. É uma aprendizagem que conduz ao conhecimento.