sábado, janeiro 22, 2005

Amabilidade

Há cerca de vinte anos frequentei um workshop de teatro na Guklbenkian, com Wilfring Market, um director de teatro alemão que naquela altura era bastante reputado. Os textos eram na sua quase totalidade de Brecht. Havia um poema que, naquelas manhãs em que o sol batia nas janelas destapando o jardim e nós nos congratulávamos por podermos estar a saborear o encontro entre pessoas que falavam a mesma linguagem, o teatro, era o nosso hino. Chamava-se amabilidade ou ser amável. Era um poema breve, em que Brecht falava da delicadeza e do compasso dos gestos quotidianos. Ler o jornal, o primeiro olhar pela janela de manhã, o café com leite. Já perdi as frases do poema há muito. Mas a força deste conceito, desta ideia atravessa-me amiúde. Sou muitas vezes bruto com os outros, apercebo-me mais tarde. Por uma razão ou por outra, sou, tenho de o reconhecer. E no entanto tenho o meu coração que tenho como tão frágil como o de uma andorinha, vive subjugado pela ideia de delicadeza, de ser delicado. Aprecio-a da mesma forma que aprecio a vida. Gostava de ter a delicadeza do tempo, ou a delicadeza com que o tempo nos apura, nos refina. Aprecio também uma emoção estravazada. Gosto que gostem de mim, por exemplo. Quando me apercebi que o poder, e o poder nunca foi algo porque lutei mas que, circunstancialmente me passou pelas mãos, me afastava do afecto das pessoas que eu gostaria que senão me gostassem pelo menos não me desgostassem, passei a odiar o poder com todas as minhas forças. Deixei os fatos, as gravatas apodrecerem na minha memória delas. E isto, só agora o compreendo, não porque me julgue alguém especial, sim porque é a única maneira de sentir que não traio a energia, a generosidade de tanta gente, trezentos e sessenta e cinco dias vezes quarenta e dois, trezentos e cinquenta e seis nos anos bissextos, que passou pela minha vida e me deixou uma flor, um gesto, um beijo, um poema, um amasso. Um sorriso. Congratulo-me de não ter precisado de ter ido a lugares longínquos nem distantes para ter conhecido gente que nunca esquecerei pela sua bondade, pela sua generosidade. Pelo seu amor.

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