Cabra Cega

Nunca conseguirei resolver satisfatoriamente a questão do tempo. Nunca ninguém o conseguirá, provavelmente. A vida é um jogo de bricolage onde sobram sempre peças. Isso tem uma dimensão pessoal que me chateia. Perdulário com as horas e os dias que me couberam apercebo-me, sempre tarde de mais, de que vivo como se fosse imortal. Mas com isso ainda vou podendo. O que me começa a irritar ferozmente é a dimensão ética. Primeiro, o desperdício. Onde tantos de nós vivem à mingua de mais uma respiração, há quem a derrame assim, sem sorte nem sentido. Haveria de haver a possibilidade de num repente de altruísmo, abnegação e lucidez, cada um de nós prescindir, a favor da nossa melhor humanidade, do tempo que mal vivemos. Depois, o tempo dos outros que eu consumo - aqui, na amizade - neste pára-arranca do pensamento. No outro dia falava com um amigo sobre o sentido da nossa presença neste lugar que, se o pensarmos a fundo, será o mais estranho de todos os lugares atravessados pela estranheza da nossa humanidade. Diziamo-nos, para nos consolarmos certamente, que o que por aqui vinha era todo aquele pensamento intermediário, que não chegando a ser matéria perdurável merece a comunicação que dele se consiga extrair. Mas tudo isso é uma verdade minguante. O que se passa é que estamos, quase todos, onde o mundo está.