sábado, janeiro 15, 2005

O lugar da metafísica é ali, ao pé do amor

Ontem, quando ela saiu, já as cinco da manhã bateriam no relógio do campanário - bastaria que aquilo fosse uma aldeia - voltou-se para a linha do horizonte e descobriu o ponto onde antes a sua metafísica se impunha. Era ali, um tudo nada abaixo do Cristo-Rei, acima da pequena rebentação, ali ao pé daqueles barcos ancorados, os cacilheiros. Amanhã eles retomam a sua vida mas entretanto vou descascar mais uns bocados de noz e fazer bolinhos, disse. É verdade que a metafísica não desapareceu logo, andou ainda ali a rondar as suas pequenas distracções. Por exemplo, colocou menos duas colheres de margarina a derreter. Já à massa faltava maleabilidade é que deu conta de que não tinha posto mel. E quando ia fazer as formas dos biscoitos apercebeu-se que não tinham fermento. Mas nada disso tinha de irremediável. Os biscoitos chegaram no seu tempo e em alguns até cometeu um pequeno perjúrio: fez um buraquinho com o dedo, arredondou-o e encheu-o com um doce de framboesa há muito esquecido no armário da cozinha. E embora ela tenha saído de sua casa pela última vez, pela última vez não tem mais, garantiu, foi uma face tranquila que, já o dia começava a estremunhar, se repousou sobre o travesseiro, consumindo, nessa distância infinda que vai do palato à alma, um travo meio doce meio queimado dos biscoitos que sempre, sempre amou. O lugar do amor é aqui, ao pé da metafísica.

1 comentário:

Anónimo disse...

Em quatro cantos do mundo o abismo do olhar, o olhar que é descoberta e não o que é falado.
Um dia, ele deteve-se naquela terra, imaginando que seria a paragem do regresso definitivo.
As árvores delimitavam o segredo essencial do seu repouso. Os passos arrastados por alguma força obscura deixavam entrever uma casa de reflexos dourados, branca e transparente no lago das janelas verdes.
Meio século distanciava a idade da casa da de César. Nesse ano, a história da casa era manchada por aquela placa enorme em que os passantes olhavam e liam "Vende-se".
César também leu e sentiu-se atraído. Era como se fosse uma armadilha a que ele ficou imediatamente preso.
O encanto foi recíproco.
Ergueu os olhos, deteveo-os no andar superior, reparou na cortina vermelha de um escuro contrastante e que escondia o seu interior.
Mais acima, e o telhado negro da ardósia fê-lo suspeitar de um passado de obsessões estranhas como o seu.
Eram iguais. Tinham nascido um para o outro.
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