quarta-feira, janeiro 19, 2005
Os nossos mais pequenos gestos mundiais
Dividimos o frio da noite e um chá de maçã e canela na esplanada de sempre. Ela diz-me das boas: estou muito orgulhosa dos teus bolinhos, aqueles bocadinhos de noz são um desfecho feliz, nunca sabes quando vais apanhar um, é uma surpresa, entendes, e depois ficas ali a saborear aquele desvelo de noz a derreter-se na tua boca, mas estás um chato. Centrado sobre ti, sobre o que podes, o que não podes..
Disse-o com aquela pachorra alentejana, da planície. Há muito que o esperava, até quando ela aguentará?, pensei amiúde. E foi assim que inusitadamente começámos a falar de política. O pai dela foi militante partidário, empenhado nisto e naqueloutro. O seu descrédito hoje é tal que já nem vota. E goza-a quando ela se veste de algodão para ir para as tendas do comércio justo. Tudo isto, esta conversa, também foi por aqui porque eu também sou, desde há pouco tempo, militante partidário. Uma impetuosidade a que dou muito pouco de mim, é verdade. Falamos da nossa (des) crença no mundo em que vivemos. Ela deixa-me falar e até partilha comigo a mesma visão de uma ausência de sinais de que o homem possa sobreviver ao homem. Mas depois interrompe e diz. Diz aquilo que toda a gente hoje diz, é o nosso consolo, fala da verdade e da alegria dos pequenos gestos mundiais. Dos nossos mais pequenos gestos mundiais. E pergunto-lhe, valerá isso a pena quando tudo já não tem conserto? E antes que ela possa responder eu apercebo-me de que a resposta é tão simples. E que ela tem razão. A nossa desesperança é ideológica.
-Já sabes a resposta?
É tão simples. Nunca saberemos se os nossos mais pequenos gestos mundiais serão a parte que falta para inverter o sentido final da nossa presença neste planeta. A única coisa que sabemos é o cheiro, a cor, a textura e a massa da nossa desistência colectiva. Prometo-vos. Desde a manhã ao acordar vou sorrir, pensando genuinamente que é possível. Talvez nem sempre o sinta. Vou tomar essa possível dislexia entre pensamento e emoção como uma doença minha. Eu estarei lá, no sorrir do nosso mundo.
Voltando às coisas simples.
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