domingo, janeiro 09, 2005
Por este rio acima...
Já não o via desde o Natal. E veio já muito tarde, era noite, tinha estado com os tios. Vinha embalado e a dormir. Quando percebeu que não ía para casa da mãe desatou a chorar e a espernear. Todas as crianças choram e esperneiam mas confesso que não estava preparado. Levei-o ao colo, pelos quatro andares sem elevador, mais a mala e a mochila e teria levado outro tanto tal a dor que carregava. Os seus gritos rebentavam com as paredes do prédio. O que vale é que vivemos na cidade e já nem liga muito à vida dos outros. A tristeza que sentia era ampliada pela vergonha. Apetecia-me também fazer de criança, deixá-lo ali ficar, dizer-lhe queres ir para casa da mãe, vai, vou telefonar-lhe, nunca mais te quero ver na minha vida toda, em vez disso abracei-o, ele sentou-se no último degrau antes de entrar em casa. Agarrei nele, disse-lhe que tinha uma surpresa, dez minutos antes tinha ido ao supermercado e tinha trazido dois kinders, ganhei dois ou três segundos de pausa na convulsão, no choro, quero ir para casa da mãe, agarrei-o, levei-o para dentro de casa, procurou a porta da rua, ía a fechá-la à chave quando pensei, deixa-o ir. Foi sentar-se no degrau da escadaria. Eu abraçava-o, tentava-lhe dar o meu calor, cá dentro estava todo esquartejado. Já ouvia a mãe na minha cabeça a recriminar-me por ter tido um almoço de trabalho, tu é que sabes, mas depois não te admires, senti-me patético, patético por estar triste, triste por ser patético, fui buscar o kinder surpresa, vá, pedro, vamos fazê-lo lá dentro que aqui a luz do prédio está sempre a desligar-se, anda, traz as instruções, ele com uma cara lacrimosa mas já sem água a bordo, a mim também não saia, não sou muito orgulhoso e quando me dá para isso desaguo-me à procura de foz que me acolha, não se tratava disso, o que se passava é que a minha tristeza era a tristeza dele, e se eu chorasse ele iria ficar mais triste ainda, mantive-me calmo, paciente, dei por mim a olhar para mim, para os meus gestos, como se estivesse fora e dentro de mim, a ficar cada vez mais tranquilo, quando chegou à sala começou a ambientar-se, a ficar bem dentro dos meus braços, dos meus beijos, voltava a ter um filho, horas mais tarde, depois de muita brincadeira, de muito riso, haveria de me surpreender indo abraçar-me dizendo, o pai ficou a pensar que eu não gostava do pai foi, não pedro, claro que não, fiquei triste, fiquei apenas triste por não quereres vir cá para casa, eu estava cheio de saudades tuas, tinha tantas, tantas saudades tuas, ele abraçou-me, eu também tinha pai, eu 'tava triste foi porque a tia susana não me deixou trazer o dvd do rato mickey a fazer de três mosqueteiros cá para casa, eu e ele sabíamos que era mentira, ele não queria vir para cá porque estava cansado, moído, e porque por mais mundos que se abram em cada porta uma criança também se amassa de andar a saltar daqui para acolá, disse-lho, ele abraçou-me, eu gosto muito do pai, e olha pai, sabes uma coisa: para o próximo mês faço anos. O pai pode comprar uma prenda, não pode? Os anos é para isso que servem para as pessoas poderem comprar prendas à vontade, tudo o que nós quisermos, já não sei se rio, se choro, deixo-me ir na correnteza, um pau de fósforo na enxurrada, por este rio acima...
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4 comentários:
O besnico quando fica, também não quer ficar. Também grita e esperneia. Chora e chora e olha-me bem dentro dos olhos enquanto diz; "Mãe, eu quero o Meu Pai!" E eu... preferia que o pai ficasse mais tempo com ele. que ele tivesse mais pai... Como se esse facto reduzisse a minha culpa, fechasse a ferida aberta. Abraço.
deve ser uma dificil situação mas não desistas de o ir buscar para ela conhecer os teus cantinhos e poder amá-los.
maryjo em
http://www.pianinhodosapo.blogs.sapo.pt
amigo, percebo, quer dizer, não é comparável eu sei. mas ainda no natal me aconteceu estar excitadíssima quando percebi que uma das minhas meninas estava a chegar - em casa da minha mãe. corri para a porta , já não a via há um mês, histérica, a minha sobrinha e tal, dá um abracinho à tia e blá,blá, blá. ela (que dizem que me reconhece you know where) nem olha para mim, segue para a sala e começa a brincar. e eu: então não ligas enhuma à tia, nem um beijinho?! não, disse ela, sem olhar para mim, primeiro tenho que fazer aqui uma coisa com a plasticina. claro que horas depois insistiu em lavar os dentes ao mesmo tempo que eu, em fazer-me companhia enqaunto tomava banho, em obrigar-me a tomar banho com o patinho amarelo que não empresta a ninguem. é assim. é difícil não estar, é difícil não estar.
que medo que eu tenho dessa dor!
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