segunda-feira, fevereiro 07, 2005

Segunda para Terça-Feira de Carnaval

Na minha infância em Mafra havia em todo o ano um dia que eu detestava. E por acaso era uma noite. Segunda para terça-feira de Carnaval. Nessa segunda feira o meu pai chegava um pouco mais cedo da FOC. Olhava para a minha mãe com uma ternura redobrada. Sorria, de uma malandrice discreta. Ajudava a minha mãe a tratar dos meninos. Éramos nós. A Susana ainda esperava a sua vez. Só eu, o João e o Pedro. Desfaziam-se em risadas cúmplices. O que é que interessa se foi ou não assim que as coisas se passaram? Trinta e tantos anos depois, é assim que os vejo, que os quero ver. Davam-nos o jantar, duas palavras mais meigas e um beijo de boas noites, apagavam as luzes, nós adormecíamos. Depois o meu pai vestia-se dela e ela vestia-se dele. Ou não. De ano para ano mudavam de cenário mas foi assim, ele, dela, e ela, dele, que a foto os registou na posteridade que é a recordação com que ainda hoje os guardo. A seguir enfiavam-se na rua, metiam-se no Ami 8 azul e rumavam a Lisboa, à Quinta de S. Vicente, que se tornou assim num lugar mítico dos meus tempos de criança.
Foto de Isabel
A meio da noite, de todas as segundas para terças de Carnaval, eu acordava e chorava, chorava que nem um desalmado. A vizinha de baixo que já estava preparada, vinha no seu robe acudir ao meu pranto, abraçava-me, o que foi?, o papá e a mamã fugiram, não fugiram nada, foram tratar de um assunto, fugiram sim, ninguém trata de assuntos a esta hora, fugiram para sempre, ela abraçava-me, ía meter-me na cama, o João talvez dissesse, és ainda mais bebé que o Pedro, eu metia-me na cama desconsolado, triste, abandonado. De manhã quando acordava já tinha os meus pais outra vez. Vinham felizes, cheios de serpentinas, de confettis, de chapéus coloridos, de recos-recos, despojos de guerra que nos confiavam a nós. Eu abraçava-os e perdoava-lhes, trezentos e sessenta e cinco dias por ano era o único dia em que se confiavam a eles mesmos.

3 comentários:

Anónimo disse...

Belíssima fantasia essa: vestirmo-nos do outro com quem estamos todos os dias e escaparmos desses dias todos, celebrando-os...com risos e confetti...Há filhos cheios de sorte!

Éclair

Carla de Elsinore disse...

um sorriso para ti amigo.

ah é verdade, naquela história outro dia houve uma troca de identidades. acontece.

JPN disse...

obrigado, Isabel, era de facto um azul um pouco mais escurinho, mas deu para matar saudades.