domingo, março 20, 2005

A aventura da paternidade

Ontem ele vinha excitado com a prenda para o pai. Escondeu-a logo que chegou a casa. Acordei com ele a saltar para cima de mim com um saco e a desejar-me bom dia do pai. E agora, ao fim do dia, já ele dorme, sou eu que me deito aqui a pensar sobre esta pequena magia que é ser pai. A experiência da paternidade transformou-me profundamente. Estes últimos quatro anos são os únicos que eu posso com alguma segurança desfiar. Lembro-me de tudo. E mais houvesse. Lembro-me de como tudo começou, num dia de Santo António quando recebo um manjerico com um verso diferente anunciando a boa nova. Lembro-me do troar do seu coração na primeira ecografia vaginal, ainda sem imagem. Do primeiro aceno ao mundo, a preto e branco. Do cuidado e meticulosidade do médico ecografista. Da tranquilidade com que ouviu Alberto Caeiro e do modo como se incomodou com a leitura de Álvaro de Campos. Das sessões de preparação para o parto. Deste tempo que em mim foi o tempo de preparação para sermos ostras. Do amor verdadeiro, autêntico, sem reservas, um dom que duvido que alguma vez tenha experimentado assim, nesta gratuitidade. No sentido da vida de repente ali, o egoísmo pessoal de desistente crónico a estancar, existir, resistir agora faz parte do único compromisso indissolúvel que uma pessoa pode tomar para si próprio. Do semear da ternura, nos abraços, nos beijos, nas carícias. O ser humano precisa, muito mais do que de ideias feitas ou a desfazerem-se, da presença. De se sentir acompanhado. De descobrir a pele, o cheiro, o som de quem o acompanha. Já uma vez o contei: de uma forma não explícita, ou até, contra aquele sentido explícito que tentamos sempre dar à nossa vida, quando o meu pai morreu perdi a ideia ou a ambição de futuro. Só o compreendi depois, perdera-as quando deixara de sentir vontade ou capacidade de olhar para trás. Logo na tarde em que o meu filho nasceu, quando lhe peguei ao colo e pensei em como gostaria que o seu avô estivesse ali, senti-me impositivamente, sem escolha, reconciliado com o futuro. Quando eu falei aqui que me sinto um gajo-gaja, para além da tentativa de humor, estava a tentar dar algo que se foi clarificando e interiorizando em mim: a defesa de uma maior presença das mulheres na sociedade implica uma concepção e uma ideia de homem e de mulher que representa um mundo onde a vida me é mais interessante, justa e bela. O que a aventura da paternidade me veio dar, e de uma forma mais aguda depois de me ter separado, foi uma incursão por territórios geralmente associados às mulheres. A minha mãe ainda hoje me pergunta se eu preciso de mandar roupa para passar ou lavar, ou se ando a comer bem, e coisas do género. Já nem lhe respondo, só consigo rir-me. No prédio em frente ao meu há uma casa onde habitam três mulheres e um homem. A janela que dá para a minha varanda é o reino das mulheres. Passam as tardes das suas eternidades a cozer, passar ou estender roupa. Quando eu pego o cesto a roupa e me preparo para a estender, sou o espectáculo daquelas vidas. O mais discretamente que seis pares de olhos que não desgrudam são capazes, sou visionado, analisado e esquartejado por três mulheres que sorriem e riem entre elas, que se surpreendem porque eu passo a roupa quando a estendo na corda. A porteira do meu prédio é um anjo, resiste a continuar a pensar que eu sou um bom vizinho e agora que me vou até diz para as outras vizinhas, só os bons é que nos deixam, embora eu tenha sido a maior desilusão da vida dela: quando cheguei, ainda por cima éramos dois homens, pensou que as roupas passadas e cerzidas iriam ser uma espécie de complemento de reforma. A verdade é esta, eu só comecei a ser verdadeiramente independente graças a três objectos que há muito fazem parte do universo feminino: fogão com forno, máquina de lavar roupa e frigorifico com armário congelador. Uma das coisas de que me orgulho especialmente é de grande parte da educação - excepto a religiosa - que meus pais me tentaram transmitir. Faz parte da minha mitologia aquele momento em que a minha mãe pediu à criada que nos ensinasse a lida da casa. Depois ela passou a mulher a dias, ou, coordenadora dos putos faxineiros como ela pomposamente gostava de se designar. Teria sido o que agora se diz, um workshop sobre vida doméstica. Lavar e varrer, aspirar, ou limpar com a sabrina, lavar a loiça, fazer as camas, arrumar os quartos, limpar casas de banho, foram alguns dos temas desta acção formativa, que não incluia nada que fogueasse dado sermos ainda muito novos. Esta é uma dimensão um pouco caricata da minha aventura na paternidade. É claro que o mais importante não é isso. O mais importante é o privilégio de crescer com, de acompanhar, de poder rever a minha própria história quando o vejo a correr, é esse efeito de saída do tempo que é também uma reflexão sobre a vida que nos trouxe até aqui. É esse riso dele que ri no meu corpo, na minha boca, nos meus olhos.

2 comentários:

Anónimo disse...

a ver por todos os pais: http://diariodapaternidade.weblog.com.pt/

ENTÃO, NÃO ACORDAM! Por se encontrarem ainda próximo do estado natural, as crianças transportam dentro de si autênticos relógios biológicos que tocam sempre à hora certa. Deixou de ser preciso acertar os relógios cá em casa. Por exemplo, os primeiros guinchos matinais, que se fazem ouvir no quarto ao lado, indicam logo as horas: são 7.00h (quanto muito 7.15h ou, para mal dos nossos pecados, 6.45h). Não há que enganar, independentemente de se deitar às 20.30h ou as 23.00h, a hora de acordar é sempre a mesma. Depois dos rugidinhos que emanam da espreguiçadeira habitual, vem a correr e salta-nos para a cama com uma energia que nos deixa ainda mais zonzos. A muito custo tentamos que sossegue e nos dê mais uns minutos, uns segundinhos de sono. É uma missão impossível:
- Então, não acordam! Estou todo cheio de fome…
Não há nada a fazer, o cronometro biológico continua a marcar as suas exigências e nós não temos outro remédio senão sair da cama e ir alimentá-lo (ou melhor, ir dar corda ao relógio).

Anónimo disse...

Uma das coisas que mais me assusta e mais me entristece é perceber que nunca vou poder proporcionar aos meus o que vivi na minha infância.

E assumo que foi uma infância previligiada. Se por um lado vivia perto da cidade, por outro tinha acesso a tudo o que é terra, animal e natureza. Acesso à vida como ela nasce, antes, muito antes de ser enlatada.

Vivi podendo andar em cima dos bois, podendo ordenhar as vacas e beber aquela coisa espessa e horrível a que também chamavam leite.

Bati a nata até fazer manteiga, tive dores de barriga por andar a comer fruta verde, arrancada da árvore antes do tempo. Até uma cicatriz de uma marrada de bode eu posso mostrar.

Mas é só isso que posso mostrar. O que vêem nas fotografias, o que ouvem nas histórias, o que, talvez daqui a mais uns anos, poderão ler no meu olhar quando penso nisso.

Na quinta havia fantasmas. Havia um mocho na torre. Havia arcas de madeira onde cabíamos cinco ou seis e onde nos escondíamos entre o milho.

Havia noites escuras, estrelas e luar. Havia fantasmas, medos e segredos. Aventura fora do online.

Havia uma fonte de água gelada, tanques de rega em que insistíamos mergulhar, entre lodo, sapos e coisas que nem quero pensar o que seriam.

E, acima de tudo, havia crianças, muitas e saudáveis. Nunca menos de 15. Com joelhos feridos, arranhadas no corpo, mas sempre com muita fome e sede. De comer, de beber, mas acima de tudo de viver, de descobrir.

Havia tanta coisa, que podia ficar aqui o resto da minha vida a viver dessa lembrança.

Espero que entre os pokemons, os gameboy e outras consolas, consigam perceber o amor que lhes quero transmitir e que me vem do que vivi nesse tempo.

Mudam-se os tempos... tento acreditar que se manterão as crianças felizes e livres.