sexta-feira, março 18, 2005

Faço que sim

Removo o pó, faço que sim. Com um pano. Nunca passo com o pano sobre as superfícies. Sirvo-me dele como espanador, para que o pó se levante e volteie no ar e caia, brando, sem ruído de aviso. Distraio-me com o fragor de uma travagem de automóvel ou o cão impaciente da vizinha de baixo a ladrar de solidão. E quando estou de novo no silêncio da tarefa que desempenho, pousou ou está para pousar o pó porque demorou algum tempo a cair e não esperei o suficiente. Conto sempre segundos muito depressa: um dois três quatro. E terão passado dois. Casa sem pó é casa de revista de decoração. É casa sem fotografias, espaço de objectos calculados e não de pedras apanhadas na praia, balões de feira. Podendo evitar, sacudo sem arrastar os livros da estante. Sobre as fotos tem de haver pó. Sobre as folhas das plantas. Sobre os nossos lábios quando mirram secos. O pó é sal que conserva, evita a desintegração das memórias. Sentir o cotão das camisolas de lã a infligir um estado grave de esqualidez à planta dos pés.

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