terça-feira, março 08, 2005

O meu melhor amigo

A propósito deste diálogo do José Cardoso Pires em frente ao espelho, lembro-me que durante anos e anos também eu conversei sozinho comigo do outro lado do espelho. O espelho era uma espécie de metadiálogo estranho. Estranho, pessoal e intímo. Entrevistava-me. Aprendi a juntar a pálpebra do olho direito como via o Paulo Gracindo fazer na Gabriela. A chorar. A olhar no longe. O espelho foi talvez o meu melhor amigo desde os tempos recuados em que era Verão e com uma camiseta de linho punha a acqua velva, a loção da barba do meu pai, dando umas palmadas na cara como via fazer nos anúncios. Lembro-me com pormenor: saía à rua como um herói de mim mesmo. Cresci nunca me separando do meu melhor amigo.Cheguei a temer que a loucura viesse disfarçada de Alice, fazendo-me entrar pelo espelho adentro. Incapacitando-me de viver a minha vida inteira deste lado. Eu vivia mais tempo do lado de lá da superfície espelhada do que deste lado. Andava para trás e para a frente, aparecendo e desaparecendo. Fazia gestos. Mimava poemas. Agora me lembro: houve uma altura em que eu estreava os meus originais em frente ao espelho. Sentava-me no lavatório, pegava na folha, e lia, como o melhor melhor actor do mundo. Fumava. Testei as argolas de fumo com ele. Sentia-me confortável lá, na sua companhia. Agora me lembro mais uma vez: era tranquilo e confortável e acolhedor o mundo que ele me oferecia. Depois amedrontei-me. Achei que não era normal eu ir para o espelho resolver todos os meus problemas. Há um momento na vida, um momento estúpido, em que tememos não ser gente normal. Entregarmo-nos a actividades bizarras e esquisitas. E estar com o meu melhor amigo era uma espécie de prática onanista. Chamo estúpida a essa ideia porque mais tarde percebemos que o único temor que deveremos considerar a partir do primeiro dia em que nos visita até ao nosso derradeiro momento sobre este mundo é esse medo de que não sejamos capazes de enlouquecer. Que tenhamos deixado escapar a oportunidade o fazer sadiamente. Sabemo-lo quando chegamos diante do espelho e, com a crueldade que só permitimos aos nossos melhores amigos, ouvimos dizer que estamos ética e politicamente destituidos. Nessa altura deixamos de nos sentir confortáveis a mirar os espelhos, deixamos até de olhar o mundo, enquanto superfície espelhada onde é possível revermo-nos, enquanto humanidade. Evitamo-los.