terça-feira, março 22, 2005

O passeio

Pego num livro. Faço várias paragens na leitura antes de o digerir. O próximo capítulo intitula-se “O passeio”. Guardo-o no colo. O eco da palavra debruça-se sobre mim e estuda a minha reacção. É, de longe, mais aliciante fazer este percurso de comboio. Apraz-me o lixo no saibro das linhas. Se se olhar bem, nem lixo, maços de tabaco, latas de refrigerante, bilhetes inutilizados... Penso que este comboio me poderia levar até ele. Se eu quisesse. Se eu quisesse acordar de manhã e vestir-me e ir ter com ele. O ar condicionado do comboio leva-me à tosse. Sento-me junto a uma janela do lado esquerdo para ter a panorâmica sobre a tua casa e também sobre o Cristo Rei. Sem sair do comboio. Duvido que as pessoas gostem da música ambiente do comboio, é clássica é verdade, só que num volume a que só se ouve a intimidade. Está sol bom prenúncio, nevoeiro ou nublado não tão bom, mesmo assim saio à rua, mesmo que o fito não seja vê-lo. Combinámos estar juntos, ponho-me a ouvir, só que não atende o telefone. O nevoeiro, é por isso? Combinámos ir à praia, não atende porque está nublado. Desconheço as suas razões, não te conheço os motivos, posso suspeitar quais são. As pessoas conseguem ver motivos nos olhos uns dos outros, eu não consigo ver nada, vejo uns olhos escuros, não vejo mais nada, não vejo alma mesmo que olhe com atenção, nunca vi uma alma, não sei reconhecer o reflexo. Os olhos escuros não reflectem nada. Não confirmas, não desmentes, nem desmente. Não exibes um fácies de agrado ou concordância ou displicência, ou mesmo indiferença. Um carro abandonado que serve de tecto a ervas daninhas, um tronco seco de árvore com muitos ramos velhos fazem-me esquecer que passei pela casa dele agora. E não saí do comboio. Evapora-se outra vez? A cabeça do Cristo-Rei hoje não se via, guilhotinada cruelmente pelo nevoeiro. Ele diz muitas vezes que não. Ou para variar, fica absorto no silêncio até me cansar. Um homem que solda uma cerca de arame com a ajuda de outro. Esqueço-me de ti durante mais um bocado. Passei pela tua casa agora e não estavas. Não saí do comboio. Não te evapores. Encontrar-nos-emos num dia nublado? O dia em que não me disse adeus estava nublado, portanto, se pedisse a minha opinião dir-lhe-ia que não esperasses pelo sol. O meu destino não é ele, é outra cidade.

5 comentários:

cbs disse...

Gosto.
Escreve mais.
Não te evapores.

maresia disse...

o nosso destino será sempre outro. condição mandatória da vida das gentes de agora.

Anónimo disse...

Porque a nossa vida é mesmo uma viagem de comboio. Só precisamos de ter alguma sorte para escolher a estação de saída.

blimunda disse...

esta história interminável dos comboios, este fascínio que essas linhas férreas exercem sobre nós, as paragens, os vários andamentos, as janelas cujas paisagens justificam aquelas leis estranhas da relatividade, da velocidade e do tempo, essas invenções de lugares sempre, sempre para lá daqueles em que nos achamos... há muitos anos, nesses idos em que tinha vinte anos, um amigo me dizia, sabes marta, para mim, a apoteose do acto revolucionário é partirmos os dois, rumo a uma terra distante, distante, inóspita mesmo, para fazermos juntos o relato da construção de uma linha férrea, aí, no meio do nada... mas claro, isso foi antes de haver o afeganistão, o iraque, a bósnia... antes dessas terras nos parecerem muito mais aqui que lá, no território desconhecido. passar a ponte, olhar o cristo rei degolado por um nevoeiro, jota, é uma metáfora da nossa existência ( como dizia hoderlin, até que a ausência de deus venha em nosso auxílio) , das nossas almas que por aqui se vão arrastando, dentro de comboios, sonhando amanhãs... beijo

textura disse...

Só depois de ter escrito é que entrevejo as metáforas. Vi há poucos dias um filme com Jim Carrey que fala sobre isto, Bruce All-mighty. Bruce pede um sinal e não os vê e os sinais estão lá. Os avisos luminosos à beira da estrada a avisar que as estrada se encontra interrompida alguns metros à frente. Chama incompetente a Deus. Aguardamos que a Sua ausência venha em nosso auxílio, não conhecia a reflexão, mas faz-me todo o sentido.
Quantas mais pontes será necessário atravessarmos?