segunda-feira, março 14, 2005

Os cavalos marinhos da Ilha de Máfia

Tenho uma amiga que ainda o Verão vem longe já anda a sonhar com o fundo do mar, com as águas translúcidas. Apetecia-me ir á Ilha de Máfia, confidenciou-me, apetecia-me brincar com os cavalos marinhos esticadinhos no fundo do mar. Parece também que eles se enrolam nos dedos. Não sei. A minha memória de cavalos marinhos é bem diferente, confesso que nunca os imaginaria assim meigos e brincalhões. Lembro-me dele, um cavalo marinho comprido, como uma chibata, recordo-me bem dele a vergastar as costas do Jorge. Naquele tempo não havia barracas mas havia pobres e a casa do Jorge deixava ver e ouvir tudo o que se passava lá dentro. Jorge é um nome inventado que coloquei por vergonha de me ter esquecido do verdadeiro nome do meu amigo mártir que por duas ou três horas de aventura na Tapada de Mafra arriscava a pele, e garanto-vos, era mesmo a pele. Mas nunca me esqueci dos seus gritos, da sua cama de ferro, do seu pai em camisa de alças, da forma como ele o desancava primeiro com o cinto e com a ameaça do cavalo marinho, depois com este, il même, o cavalo marinho. Era um tempo em que cada casa era um mundo intransponível, protegido por legislação própria, tal e qual como num castelo feudal. Por isso as ruas estavam desertas de vícios, e impurezas, mas das casas, do dentro das casas, ouviam-se gritos, gemidos, dores. Eu lembro-me, ou melhor, eu nunca consegui esquecer-me.