sábado, abril 30, 2005

O Caos no lugar do caos

A minha irmã veio ajudar-me na mudança. O meu cunhado ficou com o P. e ela veio disposta a tudo. Chamei-a na terça, quando percebi que a minha casa estava um caos e que eu iria enervar-me descomunalmente e transformar esta viagem num pesadelo. Não havia outro nome para pronunciar nestas circunstâncias. Ela é a última de um cortejo de rapazes. É forte, muito forte. Frágil também, mas eu mal a conheço. Sei que é forte. Foi nos seus braços literais que o meu pai escolheu morrer, foi a eles que, na sua morte eminente, acorreu. Sempre que a olho redobro a doçura do meu olhar por causa disso. Acredito que se nos olharmos com bondade e doçura, no dia seguinte estes bens e géneros crescerão e se multiplicarão. Ela é forte e cartesiana. Desde o primeiro dia que deixei no chão um caixote vazio. Era estranho, dizia ela, para que queres o caixote vazio mo meio do escritório? Para colocar aquelas coisas, disse, apontando para um monte onde indistintamente se viam cds, dvs, instruções de equipamento, objectos mnemónicos, quinquilharia de secretária. No segundo dia voltou a fazer-me a mesma pergunta. E eu voltei a responder-lhe a mesma coisa. Tornou no terceiro dia com a mesma inquietação. Mas como era o último dia, havia um misto de perturbação e irritação. Eu não podia explicar-lhe, porque há coisas que não são da ordem da explicação. Ela aceitou o meu silêncio, deve ter pensado, olha, é também apenas um caixote. Telefonou-me agora. Então, já terminaste o escritório?. Falta apenas um caixote, respondi. Ela ficou atónita. Sosseguei-a, vou arrumá-lo depois da mudança. Preciso de um pequeno caos para organizar o meu mundo. É ali, digo contente e feliz todos os dias, é ali que está o meu caos interior. Há quarenta e dois anos, com alguns iatos de uma lucidez terrível e corrosiva, que organizo assim, contente e feliz, os meus dias.

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