sexta-feira, abril 15, 2005
O mundo qu' entrevejo da janela do 28
Quando eu era criança o mundo era muito mais bonito, penso enquanto o 28 desce a Rua da Conceição e me surpreendo com a observação de um punhado de gente lá de fora. Escrevo isto assim porque pressuponho que o que vou dizer a seguir é consequência de tão poucas vezes me focar nas paisagens exteriores. O que para um tipo que tanto fala em humanismo é significativo e esclarecedor. São três homens e duas mulheres, perfeitamente trajados nas suas fardas de vendedores do mundo-a-retalho. Todos eles serão casados, penso, auto-exibindo este meu même de consagrar o casamento como o lugar da vida-não. Começo por esclarecer uma coisa: embora seja o relator do reino sou o primeiro a admitir que qualquer um deles é, em tudo, melhor do que eu.
Há uma coisa com a qual me surpreendo: a imensidão das suas vidas que é possível apanhar de uma janela do eléctrico 28. Está bem que falam alto mas mesmo assim, espanto-me. Também é verdade, tenho uma amiga que ocupa os seus dias extraindo-lhes a história a partir das suas carcassas, enquanto eu me adestrei a fazê-lo analisando-lhes os movimentos. Dou-me conta - e agora o eléctrico desandou e eu volto a olhá-los, como sempre fiz, a partir da minha imagem projectada - de que são uma mixórdia de mêmes, um aglomerado incongruente dos filmes das suas vidas. Fazem-no com a nobreza dos simples. Têm entre quarenta e cinquenta e tais, eles, entre trinta e quarenta e tais, elas. Os seus sarcasmos besuntados com um acne robustecido pela passagem dos seus muitos anos, os seus perfumes, os seus botões dourados, as suas melenas oleadas, as gravatas discipiendas amarradas aos seus pescoços destituídos de altivez, tudo isso são sinais ali, no limbo, mas eles não o entendem assim. E por isso, quando, no seu fato de três peças, ela se volta e dá um risinho juvenil porque ele reconheceu no seu olhar aquela mirada da Júlia Roberts, o riso dela é também um pacto de cúmplice aceitação de que naquele ar gasto e sem festividade há um resto vísivel de Bradd Pitt.
Mais uma vez perco-me no acessório. O meu mundo não era mais viçoso, fresco e bonito quando eu era criança por causa destes. Nem foi por exercício de estilo que confessei, nunca serei tão autêntico, tão simples nem tão feliz como eles. Gostava aliás de poder experimentar um dia ver o mundo pelos olhos do meu filho. Tenho alguma esperança de que se o fizesse não diria agora, quando eu fui criança o mundo era muito mais prometedor. Ocupar-me-ía antes com a descrição de como é que o cinema transforma as nossas vidas, insuflando-as de poesia, de romance, de tragédia..
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1 comentário:
Do outro lado da janela.
Seja de dentro para fora ou de fora para dentro, sempre a fascinou o mundo do outro lado da janela.
1989, Inverno ou Verão, 7:15 na estação de comboios. Sempre ali, via o das 7:18 partir, com calma, com toda a calma. Com muito mais calma do que qualquer outro dos seres que para ali se atiravam. Com calma, como se fosse normal acordar 15 minutos mais cedo todos os dias, para ali estar a vê-los sair. Partiam rumo ao mesmo destino do que ela: sobreviver ao dia-a-dia.
7:20, chegava o que viria a ser o "seu". Derramava na plataforma litros de gentes. Umas diferentes, outras iguais. Umas mais diferentes que as outras mais iguais. A plataforma, que tinha visto correr para lá, despejava agora para cá. Amarelo, verde, azul. Preto, branco ou assim-assim. Altos baixos, correndo ou tentando não ser atropelados.
Com a pressa dessas gentes, 7:23 já estaria sentada na sua janela. Não era importante a carruagem, há quem goste de viajar sempre no mesmo lugar, encontros combinados, saídas mais perto, de tudo um pouco. Ela só queria ficar à janela, fosse qual fosse, desde que virada para a plataforma, e de costas para a frente.
Acho que era nesses pouco mais de 15 minutos, que ela crescia para o mundo, aprendia, absorvia a sua energia, imaginava a sua vida. Sonhava. À noite, quando chegava a casa, derramava no papel tudo o que havia sido derramado nos seus olhos. Suspirava e sentia que podia partir para mais um dia.
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