sábado, abril 02, 2005

O mundo às claras

Desço a avenida do teatro até à praça 8 de maio, meto pela rua sofia, vou em mim, entretido com os meus pensamentos. Penso baixinho. Penso no trabalho que o tempo faz dentro de mim. A Celta vai rir-se novamente - e quando imagino a Celta a rir-se de mim é porque prevejo que me tornarei no motivo de chacota geral - quando lhe contar que de ora em diante só pararei diante da mulher com quem puder ser companhia para o resto da minha vida. Será a próxima e a única vez que o mundo voltará a ser fêmea na minha vida. Digo-o com alguma amargura; é quase certo que estou prestes a condenar-me à solidão até ao dia do juízo final. É verdade que mesmo esta aparentemente férrea condição não é blindada àquelas tortuosas elucubrações do espírito a que costumo estar sujeito em noites de maior solidão e desespero. Bastar-me-ia pensar que ela poderia ser a mulher com quem quero viver até ao meu último suspiro. Os segredos do mundo que se interpôe entre um homem e uma mulher são imensos e muitas vezes o este é o homem, esta é a mulher, tardam muitos e muitos anos. Ou enganam-se. Mas não, conhecedor dos meus próprios artifícios e artimanhas, couraço toda esta condicional: esta mulher ser-me-à revelada um segundo depois de, num impulso, eu ter estacado o passo e sustido a respiração. E responderão, como sabê-lo? Da única forma indesmentível: será a sua pele na minha que mo dirá; os seus olhos incondicionais rasgando-me; a vida que viveu, os seus anos, a sua história; o seu respirar, soprando, em mim; e nem falo do sexo. Quanto muito na citação será devidamente arrolado o desejo. O frémito. Pele, tacto, olhos. E tempo. O tempo com que nos tocamos. Nos olhamos. Pode nem ter o dom da fala. Falarei por ela. Ou então calaremos ambos. Há medida que assim penso, acalmo-me. Penso até que se de todas as viagens eu pudesse extrair resposta para uma questão essencial eu estaria prestes a deixar de ser nómada. Entro numas ruelas com nomes esquisitos. Talvez isto tudo tenha feito algum sentido outrora, antes, no tempo das grades e das serenatas. Começo a sonhar de forma premeditada: vou imaginar que essa mulher entra na minha casa. Entra em minha casa detendo-se. Diz-me, boa tarde. Eu responderei, boa tarde. Colocarei a minha rede diante do Tejo e direi, um chá? Ela responderá, um chá. Esticarei a rede do Peter Pan e dir-lhe-ei, podes deitar-te, hoje ele não vem. Estarei a exultar, a redobrar-me, mas tentarei manter a calma. Já soube que ela era ela um minuto antes. Poderíamos comer-nos ali sem alguma reserva mas não o faremos. Ou melhor, já nos começámos a comer e fizemo-lo de forma tão sublime que nem se deu por isso. Olho-a e amo-a incessantemente. Sempre pensei que amar uma mulher era fazê-lo assim, despindo-lhe o olhar até à nudez, ao caroço. Ela geme, não da minha lagarta, mas do desejo com que a desnudo em mim. Diz-me, deus bateu à porta. E mais uma vez a sua intuição é premonitória do que somos ambos. É lá que ele fica, com os seus cornos divinamente espetados na madeira da entrada. Sopra uma brisa, uma aragem neste fim de Tejo. Pego num livro, num qualquer livro e leio-o, calma e pausadamente. Sou o seu único único actor. Voltei a entrar num palco, contorço-me de dor, espasmos e alegria como o maior actor do mundo. Ela ouve-me, já sem a gabarolice do Peter Pan quando me vê a brincar aos fantoches diante dos seus amigos, mas com o desvelo de quem pensa, serão assim as nossas tardes até ao fim da nossa vida. Mas apenas estas, acrescentarei eu, adivinhando algum cansaço e fastio no leitor, viveremos como morreremos: de espanto e diversidade. Onde ela for, eu serei. Não devia ter ligado durante tempo àqueles pensamentos rascas que condenaram o romantismo à lamechisse lacrimejante. Há uma coisa que eu percebi e mesmo que isso seja uma lei universalmente circunscrita ao meu pequeno mundo, não deixarei de o escrever: o amor é o único lugar do mundo. O único lugar do mundo onde um homem pode ser uma mulher, onde uma mulher pode ser um homem e tudo isto, sendo totalmente ininteligível, estar bestialmente integrado na paisagem que a humanidade foi desenhando no prumo do horizonte. Há um estrado a que chamaremos palco mesmo que não estejamos no teatro. É a vida, a vida nua e crua. Imagino os meus dias e as minhas tardes e as minhas noites e todo esse tempo será pouco no meu desejo de me misturar com ela numa fusão nuclear em que a matéria e o espirito se entrelaçam. Seria talvez natural que nos imaginássemos cavalgando, num frémito demente, enlouquecido, enrouquecido - e não tenho alguma vergonha de o confessar, o tempo a que chamamos idade roubou-me a confiança, ela dever-me-ia confirmar, reiteradamente, com subtil silêncio, em todos os momentos desse cavalgar - mas não é isso o difícil. O mais difícil. O mais difícil é pensar o permanecer, o durar. O durar dentro dela, no exterior da sua carne, no tempo em que a sua imagem demora a extinguir-se pausadamente em mim. Escreverei enternecidamente para ela. Vejo-me a escrever-lhe. A escrever para todo o mundo através dela. Para ela como se escrevesse para todo o mundo. Será ela que irá tornar o meu texto imaterial, que lhe dará rasgo e sensibilidade. Viveremos numa casa muito pequena com um dom muito especial: as suas paredes alargam-se e infindam-se no nosso amor e desvelo pela liberdade de nos circundarmos um ao outro. Mordisco-lhe a pele de dentro, ela estremece. Passaremos toda a vida nisto. E, não teremos uma vida contemplativa. Pelo contrário. Seremos a acção da transformação. Talvez um dia escorrendo por uma mangueira enorme, do outro lado da terra, venha de lá a criança infinda rasgando-lhe as pernas de sangue e placenta, e abrindo-as, entre no nosso mundo. Se isso acontecer, estará escrito muito antes, não só não será prioritário como não o imagino. A única coisa que ainda posso prever é o nosso desfalecimento. Um dia um de nós vai abeirar-se ao pé do outro e, na imensa ternura em que constituimos a nossa vida em comum, vamos sussurar: - Estou a morrer por dentro. Será o único momento terrível, prevejo, quando a nossa morte deixar de estar apenas espalhada pelo lado de fora. Não sei o que farei nessa altura. Nem o quero pensar sozinho. Esperarei que ela chegue à minha vida, é uma ideia suficientemente terrível para pensar nela sozinho. Acabo de chegar ao hotel. É impressionante o que se pode imaginar em meia dúzia de passos, quando se desce da avenida do teatro académico para a fernão de magalhães.

8 comentários:

Anónimo disse...

ou o amor feito utupia

Anónimo disse...

Uma chávena de chá, "caramelo ou baunilha?", o barulho da colher no interior chávena que quebra o silêncio comprometedor, o invólucro do açúcar que cai no chão, um breve "desculpa" pronunciado sem convicção. E hoje sair de casa dele trazendo vestida a roupa de ontem mas ninguém se apercebe, ninguém sabe o que aconteceu ontem à noite. A magia deste segredo só meu e dele que se espalha pelas ruas da cidade mas que ninguém vê...ainda dizem que o amor é cego! Só se for cego de amor.

Anónimo disse...

o mundo será sempre fêmea, disso já não escapamos

Anónimo disse...

Gostei de ler o texto...

Abraço :-)

Anónimo disse...

pouso as palavras no chão

" Farto de voar, pouso as palavras no chão,
entro no mar, sinto o sal de mão em mão,
trago um corpo na vida espetado,
só suspenso por balas de um lado
e do outro a cair...a cair no alçapão."
Sérgio Godinho, Sobreviventes.

Anónimo disse...

pouso as palavras no chão

" Farto de voar, pouso as palavras no chão,
entro no mar, sinto o sal de mão em mão,
trago um corpo na vida espetado,
só suspenso por balas de um lado
e do outro a cair...a cair no alçapão."
Sérgio Godinho, Sobreviventes.

Joana disse...

:-) e um abraço

Philomela disse...

Ubi tu Gaius ego Gaia...