Os autocolantes do velho comunista

Embora menos, sou ainda muito bicho solitário. Gosto de desacompanhar. De andar ao som dos meus próprios passos. Porém não sou, como ninguém é, feito de uma só peça. Fui totalmente sincero no outro dia, nunca iria para uma ilha deserta. À vida sem o outro, o outro perto de mim, não lhe chamo vida. E tudo isso conflui em mim numa alma de eremita. Há dias que vou de manhã à noite sem dizer uma palavra que seja. É por isso que não gosto dos feriados. Excepto do 25 de Abril, claro. Os feriados engolem-me no meu silêncio, que fica a ruir dentro de mim. Ruído de ruína. Sinto-me ruir, desabar. Muitas vezes saio à rua e invento perguntas tolas só para ouvir a voz humana. Sabe-me dizer onde fica uma farmácia? ou então quando peço o café, digo primeiro, boa noite, por favor, queria um descafeinado? E não se importava de me fazer o favor de me trazer um copo de água?, são assim palavras a mais. Regra geral com um terço das palavras já paguei e comprei o jornal. Estou a enrolar a história propositadamente. Alguém ao fim de parágrafo e meio há-de perguntar, estavas mesmo a falar de quê? Falava de que gosto de lugares onde as pessoas nos tratam por tu. Ainda nem aqui moro já tenho aqui gente a quem saudo com a mão larga. Uma cereja em cima do bolo: há na Vila um bar-snack tardio. Tem coisas simples, bem cozinhadas. Com cheiro. E de repente há um disco dos Xutos que se ouve, ou então, Vê lá isto, e era o Variações, tratam-se por tu, há amigos na clientela. Mas a surpresa viria depois. O album de autocolantes que um velho militante comunista fora juntando e que, nas vésperas da sua morte, começou a colar nas folhas do albúm, como se fossem fotos. E são. O do canto é o Alende. Do Che há dois. Há um autocolante assinalando a fuga de Peniche. No princípio do album duas fotos-fotos. Álvaro Cunhal e Vasco, o Companheiro Vasco. Hei-de chamar a isto noites?