sexta-feira, abril 29, 2005
Trespassa-se
Há muito tempo que ronda aquela loja. Primeiro com passos atávicos, a medo, como quem apenas olha para o seu reflexo e não distingue os artigos que enfeitam a montra. Depois, mais afoito, encostando-se ao vidro e expondo-se aos olhares que vêm de dentro. Que mais não são do que o seu próprio olhar. A multiplicação de reflexos fascina-o: a imagem de um homem atarracado pela força centrífuga dos anos é-lhe devolvida, não só pela superfície espelhada da montra mas também pelo cinzento cortante das centenas de espadas, alinhadas como um exército, lâminas com o fulgor guerrreiro da sua adolescência. Ou pelo menos ele assim gosta de pensar, que de fulgorante a sua adolescência nunca teve muito, dividida entre o dever de chegar a adulto e o medo de deixar de ser criança. Dependente. Os melhores anos da sua vida foram passados junto às saias da avó. Na Rua das Trinas fazia de sombra constante de Dona Carolina, varina afoita agarrada à cesta das sardinhas e desapegada do neto que se lhe pendurava sempre na ilharga. Mas não vamos perder tempo com isto. Não vamos procurar razões para o que vai acontecer a seguir. Para quê? Voltemos à loja. À concentração extrema de um corpo que se encolhe, músculos retesados. Uma gota de suor, demasiado ínfima para ser aqui referida, intromete-se na história e vive na distância entre a testa do homem e a calçada portuguesa em que se estatela. Conseguem ouvi-la? Ploc. Não se distraiam. O letreiro está na montra, enviesado e um pouco carcomido pela poluição da cidade. Trespassa-se. Há uma ligeira hesitação. Uma mão que se dirige ao bolso, tira a carteira. O olhar. Trespassa-se. Bastam dois passos para se encontrar dentro da loja. Um outro homem, também pequeno, levanta-se do banco de três pernas poisado junto ao balcão. É estranhamente parecido com o homem que acabou de entrar. O da gota de suor. Olham-se. Quem entrou treme. Quem foi invadido também. Quanto, consegue balbuciar o neto de Dona Carolina. Faça a sua oferta. A carteira aterra suavemente no balcão, duas notas de 50 euros e uma fotografia com ar de varina virada para cima. Um silêncio pesado, com cheiro a sardinha, é interrompido por um silvo cortante. O homem que entrou baixa o olhar para a lâmina que lhe atravessa o corpo. No outro extremo da espada, o lojista encara-o quase com amor. Retira a lâmina. E arruma o corpo com os demais, no fundo da loja.
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