domingo, abril 17, 2005

Um frio burguês (actualizado)

Tinha decidido deitar-me mais cedo do que aquilo que um sábado à noite aconselharia a um espirito boémio como o meu. Lavei até a louça, pensando que isso me sossegava e sossegou. Depois agarrei no livro com as entrevistas de Núremberga e que um dia ainda lerei. Fiz chá, um chá simples de camomila e coloquei-o na umbreira da cama. Estava tudo a postos para uma noite aquietada quando ouço vozes à janela, do lado norte, que é o lado onde a cidade cresce para a colina das Amoreiras. Quando vou já as vozes se sumiram, e então reparo que há meses que não vinha a esta janela que primeiro desce para o Intendente e depois sobe, sobe sempre, até às famosas torres do Taveira ou ao Ritz. Está nevoeiro. Faz frio. E eu tenho o primeiro pensamento pires daquilo que já não controlo, será a minha noite: vou escrever para aqueles que têm frio. Para aqueles que têm frio. Não penso em escrever para os que têm frio por causa de algum genuíno sentimento de bondade e de altruísmo mas porque eu mesmo sou invadido por uma sensação de frio, de desconforto. Um desconforto confortável se assim se pode dizer. Deixo-me ficar na janela invadindo-me com esse frio, um frio que não enregela, arrefece, e é nesse momento que me dá uma vontade de escrever. Volto a ligar o computador, sento-me, ponho a caneca de chá ao meu lado e aqui estou, o mais bem posicionado que consigo em relação aos meus fantasmas, aos meus demónios. Não me apetece chamá-los, que fiquem por lá, seja lá por onde for o lugar que habitem, não estou em estado de especial desmoronamento mas tenho consciência disso cada vez mais, não há vida para lá dos quarenta que nestes momentos não se lembre que toda ela, toda a vida é percorrida em estado de desmoronamento, estou só por exemplo e a solidão dá-me algum desconforto, mas não me apeteceria hoje que ninguém entrasse por aqui dentro, ninguém mesmo, há na natureza desconfortável da solidão uma ténue sensação de conforto, o que se passa é que eu não sei onde ou até onde vou, tenho frio, escrevo para os que têm frio, um frio burguês, pires, em estado de representação. Nem isso serei, o que sofre. Uma existência que só pela representação, pela simulação pode aspirar a compreender o que sofre de condição desumana. Tudo em mim tendeu para a alegria e a felicidade. Nasci num país com sol e com sol tenho vivido a maior parte da minha vida. Amei os meus pais e por eles fui amado, tenho algumas raízes podres, a desligarem-se da terra, mas até nisso sou banal. Não sou rico mas também nunca fui pobre; vivi doze anos em ditadura mas era muito pequeno para a sentir, hoje sei que Salazar e Tomás e Caetano mandavam nos meus pais que em mim mandavam mas nunca senti isso de uma forma séria, persistente, tenho amigos que por causa disso mudaram de escola, de cidade e de país, devo dizê-lo, nunca tive verdadeiramente frio na minha vida. Talvez seja essa a nossa desgraça: representarmos a dor que não sentimos. Não apenas a ideia de que representamos que é dor a dor que deveras sentimos. Hoje compreendo o poeta de outra forma ou então chegou a minha vez de desmentir o poema. Não é a dor que deveras sentimos. Voltemos atrás, à nossa desgraça, à nossa maldição: representamos a dor que não sentimos. E representamos a dor que não sentimos porque sentimos que as nossas múltiplas dores não possuem aquela natureza insuportável da verdadeira dor a que alguns de nós, muitos de nós, estão sujeitos. A corda que prende o outro também me ata o pé, é a frase chave do nosso desígnio de representarmos a dor do outro. Como a dor parece ser ela mesma também, na sua maldição, na sua condição insuportável, para sempre na vida dos que sofrem, ela surge como se fosse para sempre indissociável da vida daqueles que vemos a sofrer. Queremos então também sofrer, inventamo-nos no sofrimento. Não sofremos verdadeiramente mas começamos a representarmo-nos no sofrimento. E como não nos damos conta do processo de renovação dos sofredores que se vão revezando nos lugares de sofrimento, que é como quem diz, aqueles que sofrem e aqueles que alimentam o sofrimento do mundo, só o nosso sofrimento é para sempre, como uma carcassa, um véu, por isso dizemos, sofrimento existencial e devotamos-lhe a totalidade das nossas vidas. Custa-me dizer isto, mas aquele homem que acenava da Praça de S. Pedro só conseguiu sobreviver à sua dor, ao seu sofrimento, porque, ao lado daquela verdadeira dor que lhe percorria o corpo, se entregou à representação de uma outra dor, de um outro sofrimento, e foi nesse simulacro que, tal como nas histórias no Nazareno, padeceu e se libertou.

3 comentários:

Anónimo disse...

eu também (não).
marta m.

Anónimo disse...

se nos ligarmos verdadeiramente ao que outros sentiram, ficaremos mais perto da essência do frio

Anónimo disse...

oh.