quinta-feira, maio 05, 2005
Caro amigo que gosta de receber cartas,
É verdade, escrever e receber cartas é muito bom. Claro que há um travo especial na carta do correio, ou na mensagem dentro da garrafa. As últimas atravessam intempéries, conhecem animais das profundezas; as primeiras vão a cavalo nos carteiros, viajam de comboio ou pelo ar. Colocamos um envelope no marco. Tanta coisa pode acontecer até ao chegar ao destinatário desenhado de língua de fora na frontaria do envelope. Tal e qual um filho, pomo-lo no mundo e é rezar para que chegue bem aos seus sonhos.
As cartas com selos vêm de longe, têm um carimbo, são transportadas, dependem e quase sempre chegam. Quando chega dá um frio na barriga e é preferível não se ter nenhum parente na guerra.
( Pensei recentemente colocar uma mensagem dentro de uma garrafa, daquelas antigas de sumo, de vidro verde fosco. É uma garrafa portuguesa, se fosse uma garrafa mesmo que antiga, mas de cola, não chamaria atenção uma vez chegada à América. Lá há daquelas a pontapé. Mas se fosse uma garrafa de vidro verde fosco a chegar às Américas, isso sim, é que era. Se eu fosse um americano essa garrafa chamar-me-ia a atenção, e eu nadaria no seu resgate se a garrafa boiasse, ou agachar-me-ia para a pescar se se aninhasse no sargaço trazido pela maré. Leria a mensagem que viria escrita em francês.
Se fosse um americano culto não confundiria o português com o espanhol, pois saberia que o espanhol tem y´s e tiles por cima de uma consoante pelo menos, como em sueño. Não é? Ah e os espanhóis também por lá têm palavras bonitas a acabar em d´s como Libertad, Igualdad e Fraternidad. E no fim de toda a preparação e fantasia, pensei que a bela da garrafa podia voltar para trás e ser vista por um português. Não, não podia ser. Alguém me poderia reconhecer a caligrafia.
A mensagem que, mesmo assim, cheguei a escrever, continha um poema de Paul Éluard, cujo nome é a última palavra do poema. Em francês, porque foi a França que lhes ofereceu a estátua.
Viria assim:
Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écris ton nom
Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom
Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom
Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom
Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom
Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J'écris ton nom
Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J'écris ton nom
Sur la lampe qui s'allume
Sur la lampe qui s'éteint
Sur mes maisons réunis
J'écris ton nom
Sur le fruit coupé en deux
Dur miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J'écris ton nom
Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ces oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J'écris ton nom
Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J'écris ton nom
Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J'écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom
Sur l'absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom
Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté
Traduzido em português por Jorge de Sena em http://www.triplov.com/poesia/paul_eluard/liberte.htm)
As cartas sabem bem com selos, apesar de os selos não saberem muito bem. São meio doces, que já experimentei quando a cola não estava à mão. Ainda bem que não temos Rainha nem Rei, senão lá tínhamos de ser indelicados e vá de lambidela à socapa nas costas de um iminente!
As cartas podem conter mil e uma mensagens. As cartas podem ser sinceras ou formais. De despedida. Notas de suicídio.
A carta é uma emoção selada, contida a ser desvelada por ente discriminado (por isso tão importante que não abram as nossas cartas), como um segredo que se conta para a concha das mãos, fechada de seguida e só aberta no cimo de uma montanha.
Com Saudades,
Textura
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2 comentários:
Tenho saudades do tempo em que recebia cartas (e em que as escrevia).
No Verão, tinha eu 12 anos, correspondia-me com uma amiga, por sinal também Rita.
Que emoção: esperar.
Que emocão: abrir.
Que emoção: ler.
Que emoção: escrever.
A pessoa ali, à distância da nossa mão, de tão sentida, de tão amada.
Também adorava escrever, aí mais pequena, ao Pai Natal.
Mantenho este jogo, para mim doce, com a minha filha, desejando que nunca chegue a idade em que me irá dizer, com os olhos tristes e zangados de traição: "Mãe, o Pai Natal não existe"!
Sei pouco francês, devo confessar.
Se fosse eu, o americano ou o português nadaria até apanhar a garrafa, que seria concerteza verde e de vidro grosso, e ficaria o resto da tarde a tentar imaginar como seria a pessoa que a tinha deitado ao mar.
Depois, à noite, poderia até sonhar, agitada, que eu era o outro ou até a própria garrafa...
obrigada. pela carta e pelo poema, que é dos mais bonitos que conheço. a ideia de escrever o teu nome no que não comporta nada de definitivo. gosto da núvem, da areia do deserto, da neve que derrete. sobre a garrafa, só posso dizer que encontrei uma dessas verdadeiras, verdes e foscas, e respondi. e responderam-me. e respondi. e... coisas de quem se faz ao Mar!
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