sexta-feira, julho 01, 2005

O mundo lá de fora

Abro os olhos para o mundo de fora. Apetece-me abrir os olhos para o mundo de fora. A minha tentação é ir buscar um jornal. Descer lá abaixo à televisão do teatro. Mas isso não chega a ser o mundo lá fora. São as minhas representações do que é o mundo lá fora. Ou do que devia ser o mundo lá fora. Mas se eu não sei o que é o mundo lá fora como poderei pensar no que deveria ser o mundo lá fora? Pensar não é ter ideias das ou sobre as coisas. Pensar é extrair a ideia da coisa . É abrir os olhos para as coisas e para as pessoas e para o que elas fazem, para o que segredam, para o que ocultam, para o que falam. Abrir ou fechar os olhos para cada um de nós como coisa, e assim, dar a cada coisa uma ideia. Uma ideia autêntica. Uma ideia ferida pelo seu acto de pensar autenticamente é a única ideia que pode ser suportável para uma coisa exaurida, vilependiada, dorida, agastada com o seu desígnio de coisa fodida pela idiotia dos olhares . Não quero pensar o mundo lá de fora. Quero vê-lo. Quero cheirá-lo. Imagino, para me ser mais fácil, que o mundo lá fora é o corpo de uma mulher. Mesmo diante do corpo de uma mulher eu farto-me de pensar mas a verdade é que sempre que me dei a não pensar estava nu diante de uma mulher desnudada. Imagino por isso o mundo como o corpo de uma mulher. Só que o corpo de uma mulher é belo e o mundo lá de fora não me parece que o seja. E perguntam, mas como raio sei eu que o mundo lá de fora é isto ou aquilo se ainda nem abri os olhos para ele? A pergunta é justa, mas eu sei. Sei por causa desta pulsão que sinto para pensar o mundo. Eu só a sinto por causa de uma circunstância ética que o amor sempre me traz. Não é por militância partidária, associativa, agremiativa, corporativa, clubistica. É porque o amor sempre me trouxe esta vontade de sair de mim e ir atrás do mundo que antevejo quando amo. É por isso que eu verdadeiramente amo e estou sempre em estado de prontidão para receber o amor em minha casa. Para o acolher na minha melhor sala, no meu quarto, no meu corpo, na minha melhor ideia de mundo. Eu conheço-me, vou-me conhecendo como à aspereza da minha mão. E se esta circunstância ética surge e se sinto vontade de abrir os olhos em vez de pensar em fugir, é porque o universo inteiro, o lugar onde vivemos, fenece, apodrece, e precisa do meu amor. Não, não me entenderam bem, não é de mim enquanto eu, o gajo que aqui estou, que desce e sobe as ruas, que se amargura menos do que devia, que saboreia o Chiado, todas as tardes, que sobe ao 28 e regressa a casa todos os dias, é de mim enquanto ser tocado pelo amor, pela exegese do sujeito caído sobre a terra que o pariu. É o sujeito assim explanado, dissertado, que interessa ao mundo que me carece, e ao qual devo a graça desta vontade de me desfazer em dádiva. No instante em que me sinto tocado pelo amor a minha vida deixa de ser presa da inutilidade constante e permanente em que gasto os dias que me confiaram. É um repente, não mais do que um iato, um sopro, um sopro de ar, mas existe. Não me custa pensar que desaparecerá. Ou até que já desapareceu. Que só dizemos amo, quando declaramos a extinção do amor. Não, não é desse amor, desamor, sim querida, fofo, ai fofinha, gosto tanto de ti, tan-tan-tan-tanto de ti, meu amor, minha lulu, minha luluzinha, amo-te, anda para o pé de mim, não é esse amor que me incendeia o peito, o amor a que me refiro, não o sei. É qualquer coisa que me vem da terra onde nasci. Um campo verde. Um desejo desabrigado de me reconhecer nas pessoas. Na festa. Quando a lua sobe ao céu eu, mais tarde ou mais cedo, exulto sempre. Exulto porque reconheço as noites da minha aldeia e a minha aldeia é o lugar para onde o amor sempre me leva. Amar é assim um desígnio, uma possibilidade de fazer sentido. Às vezes eu sei, escrevo aqui coisas tristes. Não serei triste, ou na tristeza, mas escrevo coisas tristes. Estou dentro de mim, demasiadamente fechado em mim, e eu, quando me fecho sobre o meu dorso de corcodilo minhoca, de centopeia com calos, sou um yogurte de batata fora de prazo. É por isso que eu sou capaz de saudar o amor assim, como agora, reverentemente, o faço. É porque amo o que o amor faz em mim. Irriga-me o sangue, as veias, dilata-me o coração, treme a minha carne, a minha arquitectura de gente, estremeço. É nesse estremecimento que eu viro os olhos para fora. Apetece-me voltar a fazer algo de útil da minha vida, e a única coisa de útil que uma vida tem, é o Outro, o outro em nós. Dar-mo-nos. Abro os olhos para o mundo lá de fora e navego na mais tormentosa cegueira. Vemos com o coração, é com ele que destapamos o mundo.

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