sexta-feira, julho 08, 2005

A Retórica da Culpa e da Inocência

Onde procuraremos os inocentes neste mundo? As nossas democracias organizadas têm esse defeito: confundem pragmatismo e organização com desresponsabilização. Profissionalizam a arte da matança, a arte da guerra. E mandamo-los matar. Mandamo-los matar e serem mortos. Fazemo-los fortes para isso, para matarem. E para serem mortos. E quando lá chegamos, ao campo de batalha, porque é preciso esclarecer, há um perímetro de guerra no qual é legítima a violência, matamos piedosamente. Primeiro, com alvos centrais, aqueles que têm uniformes que, como os nossos, são possuidores de um livre trânsito para a morte. Aqueles a quem fizémos, despudoradamente, perder a inocência. Depois, como alvos colaterais, todos aqueles que morreram e serão muitos. Fazemos isto como se fosse um jogo. Mandamos toneladas de jornalistas, a pool, e nomeamos um adido de imprensa que vai alinhando as baixas. Uns, os desprovidos de inocência, em tom de façanha: aos dias de tal, matámos tantos e morremos uns poucos. É o teatro de guerra e nele quem impôe as regras são os senhores da guerra. Aqueles que se adestraram para matar. Que criaram poderosas máquinas de guerra. Mais um eufemismo: dizemos máquinas de guerra para nos desresponzabilizarmos. Antes do ataque ao Iraque dizia-se que o tempo voava contra a paz porque a poderosa máquina de guerra já estava em funcionamento. Mas não eram as máquinas que conduziam a guerra, eram os homens e as mulheres. Éramos nós. A retórica da inocência faz parte de um jogo, um jogo antigo, o jogo da guerra. Um dispositivo que também aterroriza o mundo. É muito eficaz, contem a barbárie nos limites dos perímetros de guerra, mas só vale se aceite de parte a parte. Não foram os terroristas que criaram o terror, sabemo-lo. Sabendo que nós criámos máquinas de guerra que são quase indestrutíveis dispositivos de matança, fizeram-se civis para montarem a sua artesania guerreira. E enquanto civis matam civis. Os terroristas são como os nossos soldados de camuflado escondidos entre o arvoredo das matas só que, na floresta humana, camuflaram-se de gente como nós. É o teatro de guerra feito vida quotidiana. O terrorismo militariza despudoradamente o mundo em que vivemos. O terrorismo está para os exércitos das democracias contemporâneas como a guerrilha estava para os exércitos coloniais. Não é nem menos hipócrita, violento, sanguinário, ou inumano que os projectos de bombas inteligentes, de neutrões, ou de todo o dispositivo bélico que poupa dinheiro à reconstrução das cidades devassadas pelo terror da morte e da guerra. O terrorismo é o modo de tornar forte a fraqueza e fraca, a força e essa é a única racionalidade bélica onde se conhece alguma qualidade mais próxima daquilo a que costumamos chamar inteligência. Amanhã, uns séculos depois, se ainda cá estiver rasto humano, este terrorismo das bombas estará já institucionalizado. Ensinar-se-à nas escolas, nas diferentes academias de guerra. E não será por isso que se terá acabado o terror. Novas formas irromperão pela vida de todos os dias. Porque a guerra, na sua espiral de violência é incontrolável e será sempre a suspensão do acto de pensar.

Sem comentários: