segunda-feira, agosto 08, 2005
Falibilidade
Não é muito comum, mas acontece-me. Um mal-estar inespecífico, assim que saio do cinema.
Costumo tentar perceber de onde vem o desconforto. Em regra deve-se a alguma associação não assumida in loco, com algum aspecto da minha vida passada ou presente. Desta vez, andando com o filme às voltas no peito, não consegui imediatamente encontrar ligação.
Incomodada, entrei na carruagem de metro.
A meu lado, sentou-se uma senhora com cerca de sessenta anos de um louro cuidadoso obtido artificialmente.
Nestes momentos de introvertido incómodo, a única via possível de desconcentração é o perfume de alguém.
Alguém mais velho de um doce e tímido envelhecer.
Era um perfume de infância.
Talvez a minha avó o aspergisse todas as manhãs nas regiões obrigatórias: a saber atrás das orelhas pescoço e pulsos. A minha avó não é uma pessoa quente, nunca foi, mas usava perfumes quentes.
Sempre gostei dela assim tanto e gostei mais depois de crescer e de lhe saber mais vícios que fumar muito e usar sapatos muito altos.
Primeiro chocou-me a falibilidade. Depois seduziu-me.
As avós dos contos não são falíveis. São brancas e lentas as avós dos contos, com o tempo todo do mundo. Não fumam nem desafiam nem dormem até tarde nem têm arroubos de mau humor nem amarram burros nem exultam com idas secretas ao casino... Não coram. À minha avó acontece-lhe tudo isso.
Se as avós podem ser falíveis, quem pode não o ser?
Era com a minha avó que associava o desconforto que o filme me provocou. Vi-a na Gena Rowlands, em A Noite de Estreia de John Cassavetes. Vi-a , no confronto da persongem com a morte da adolescente que em si existira: menciona, no início do filme, que não consegue mais sentir, como aos dezassete anos, as emoções à superfície.
A minha avó tinha-me dito há poucos dias que a vida era monótona quando lhe perguntei por novidades. Doeu-me que o sentisse.
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