terça-feira, fevereiro 21, 2006
O Tejo é um traço de giz que liga duas margens
Levar-te-ía a imaginares o Tejo. Dir-te-ía, vê um dorso liso, ligeiramente escamado, com manchas de luz. Tu interromperes-me-ías, como fazes sempre, e perguntarias, manchas de luz?. Manchas de luz, insistiria eu serenamente, como quem está na posse de um segredo. E o que é que há mais?, perguntarias já meio impaciente. Há quase tudo. Espera, vou contar-te devagar. Por exemplo, sabes o que é um cacilheiro? Não saberias. Um cacilheiro é um pedaço de giz que atravessa um leito unindo duas margens. Um cacilheiro é isso? Um risco? Lá ao fundo há casas, as mesmas casas que há aqui. Imagino que são as mesmas casas embora saiba que não são as mesmas. É que não precisam de ser realmente as mesmas casas para que sejam as mesmas casas. São casas mesmificadas. Neste jogo da alteridade possível, quer dizer, do fingirmos que estamos em toda a parte, são a mesmificação do acto de habitar. E há pássaros?, perguntas, desajustada deste meu tempo de contar. Eu sorrio, começaste a ver por ti própria os lugares onde te levo. Um dia levar-me-ás a visitar os teus lugares improváveis e esperarás de mim o mesmo. Há pássaros. Gaivotas, pombos, aves. Aves batendo as asas, repenicando os ares. Tenho dentro de mim Ícaro, sabias? Durante o tempo em que fechaste os olhos um cacilheiro saiu do Cais das Colinas (é daí que sairam sempre os meus cacilheiros) e chegou ao outro lado, o Cais do Gingal. Fecho os olhos para ver melhor. As pessoas saiem. Saiem todas mas não saiem de modo igual. Há umas que se voltam ligeiramente saudando o rio. Fazem-no sempre. É este rio que lhes torna o dia-a-dia mais dificil, que as faz demorar, compasso de espera entre as ligações fluviais e terrestes e mesmo assim não conseguem pôr o pé em terra firme sem o saudar. E quantas vezes de manhã, quando o mar está agastado e se agita em espuma e fúria lá vão eles a balançar e enquanto balançam pensam que um dia tudo aquilo pode ir ao fundo, ao fundo de quê?, perguntas, ao fundo do mar, respondo, desiludindo-te, querias um bocado de metafísica agora. Não há metafísica nestes olhares. Nestes gestos. Há cansaço. Há um devir trapalhão e misericordioso com os resistentes, quer dizer, com os que se aguentam entre as dízimas e as promissórias. Os que morrem devagar, pois duvidas que é a vida que definha no lugar que isto é? Tu abres os olhos. Para não veres nada sempre é melhor teres os olhos abertos, pensas. Eu sei os teus pensamentos. Não fui a tempo de te convencer a manteres os olhos fechados mas sei ler os teus pensamentos como outros há que lêem as mãos. Estou a morrer, dizes. E eu mais uma vez pressinto o que te vai na alma, essa dor antiga, esse remorso de existir, essa memória truncada. Éramos os dois crianças, brincávamos no pátio da escola, tu disseste-me, este é o meu pipi. E mostraste-mo. O teu pipi era um risco a giz, um traço, entre dois lados. E eu mostrei-te o meu. Enrugado, enfezado - fazíamos sempre este jogo no Inverno, sei lá porquê - com os tomatinhos muito pequeninos. Sabiamos lá naquela altura o que era tusa, nem sei porque me veio isso agora, crescemos, já não me mostras o teu pipi há tanto tempo, a última vez foi antes de morreres, mandaste as lá de casa chamarem-me, a menina quer ver o menino, disseram-me, eram duas, a da copa e a cozinheira, foi aí que eu percebi que nunca seríamos imortais, eu vou primeiro, disseste, demora o tempo que quiseres, que precisares, emendaste, sabias que por minha vontade eu iria logo contigo, iriamos mostrar as minudências ao pai do Céu, naquela altura o presépio ainda estava inteiro. Lembras-te? Tens toda a eternidade para pensares nisso, para exercitares a tua memória prodigiosa. Eu só me lembro quando venho a este bocado de giz entre o Cais do Gingal e o Cais das Colinas e fecho os olhos para neste exercício meio sorumbático e necrófilo, me lembrar de ti. Do que fazes em mim. A tua morte acompanha-me deste o dia em que nasci. Se choro é porque choro, se rio é porque rio, mas não há dia nem hora em que me deixes. É a tua morte, dia após dia, minuto após minuto que prepara o chão branco onde me deitarei para sempre. Isto senão me queimarem os ossos, o que não me admirava nada. Ainda estás a olhar o rio?, perguntas-me. Sabes bem que não, nem te respondo, sabes bem que não. Eu não sei o que se passa comigo, com a escuridão, com as trevas onde mergulho quando aqui venho mas a verdade é que eu só vejo as águas, os pássaros, as manchas de luz, os barcos, os cacilheiros, esses riscos de giz que traça sulcos nas águas, as próprias aves, eu só vejo tudo isso nos primeiros momentos, nos primeiros instantes. Depois fecho os olhos e é contigo que me encontro. Nunca soube quem eras. Ás vezes é-me dado tactear as formas de que te revestes e talvez seja isso ter algum conhecimento sobre quem tu és. Eu costumava-te chamar a minha febre cósmica. Lembras-te? Ou a minha tesão de infinito. Havia um morro onde eu costumava ir, no término do 44, no Prior Velho, onde tantas e tantas vezes quase te reconheci o rosto. Eu escrevia nessa altura. Escrevia verdadeiramente. Não como agora faço. Com as mãos empanturradas de nada, de coisa nenhuma, de uma vaidade, de um desejo de agradar. Escrevia porque acreditava que se não o fizesse podia morrer. Que não saberia viver sem as palavras. Hoje sei que não. Podemos viver sem nada. Deste que não nos tirem o ar que respiramos, fazemos prodígios com a arte da sobrevivência. A humana condição traça para si grandes propósitos mas a verdade é que despojados de tudo, dignidade, liberdade, continuamos a viver. Essa é a maior afronta que deus nos fez. Não nos fazer reféns do sublime que em nós tange, que em nós vibra. E tu perguntas, o que é que isso tem a ver com este rio? Tem tudo. O rio mais triste da minha vida triste foi assim que lhe chamei um dia, lembras-te? Não sei o que faria sem ti. Tenho medo do dia em que me morras, em que me morras definitivamente, irreversívelmente. Em que acorde e não me lembre mais. Imagino acordar e não me lembrar e há qualquer coisa de inimaginável, de irredutível á imagem, de não trabalhável pelo pixel. Acordar e não me lembrar deve ser a mesma coisa do que não acordar. Onde é que começa o gesto, o dia de um amnésico? E comecará em algum momento? Ou será uma história interminável? Olhar este rio é olhar a morte do nosso mundo. Os barcos que ali andam são os artífices da nossa desaparição. São o fumo e o comércio, dizia o poeta. Dizemos nós. Que nunca a voz se hesite de onde deve estar. Ao pé dos poetas. A água ainda é azul ao longe. Ainda é água. Quantas vezes imaginei a morte súbita deste rio, devorado pela nafta, pelo querosene? E ele, a sua imensa mole aquosa ainda está aqui, ainda me sobreviverá. Será assim também com o mundo? O mundo sobreviverá à minha morte, à morte do meu filho e do seu próprio filho? Quantas gerações teremos ainda para zombar de deus? Quero a política. Alguém mais caridoso que se chegue à frente e que nem que seja com o olhar me indique um lugar onde se lute por algo que valha a pena. Um guichet de uma quimera perdida. Sou um visonário cego, com os olhos retorcidos, virados para dentro. Ainda estou diante deste rio, porque duvidas? estou diante deste rio mas não sei tudo. Não sei nada. Sei que sofro. Quanto mais feliz sou mais sofro. É um sofrimento de que não me dou conta, é certo. Mas está cá. Do sofrimento não se sofre só quando dele damos conta. Construimos o sofrimento nos dias felizes, sofremo-lo nos ímpares. O facto de não me dar conta do sofrimento de que hoje sofro mais me faz sofrer. Um dia, já sem luz, as trevas virão pedir que me explique. Já imagino o demiurgo: "Explique-me superiormente isto.". Espero não estar enervado nem zangado nesse dia. Tenho uma propensão para estragar tudo nessas alturas. Já me estou a ver, levantando-me, com aquele desprezo arrogante que me vem desde os tempos em que imitava o Marlon Brando e o Paulo Gracindo no espelho da casa dos meus pais, já me imagino a responder-lhe: "Explico-te é a puta que te pariu, seu cabrão de merda! Vai-te foder." Quem é que o gajo pensa que eu sou? Há aqui gajos que escrevem como se quisessem explicar superiormente isto. Eu não. O mais que consigo e isso é quando me calo, quando me calo totalmente, e acho que em quarenta e três anos de vida só uma vez me calei totalmente, foi há vinte anos, estava na Praia da Marreta em Sagres, o mais que consigo é ficar na dúvida se entendi superiormente isto. O retorno à politica. Como escreveu um dia a Eclair, o amor é o melhor discurso sobre a política. Por muito que nos engajemos, que façamos bandeiras e que as queimemos, que façamos barricadas disto daquilo, tudo isso não serão mais do que reocupações de mitos que já não nos explicam. O que há entre nós e o mundo não é a fome, não é a desiguladade social, económica e política, não é o petróleo, não é a água. Nem a falta que o foder faz à vida que levamos, como parece quando ouvimos a sexóloga do reino. Tudo isso é importante. Se fodêssemos mais, se tivessemos mais petróleo, se houvesse mais água, se não houvesse tanta fome, se não houvesse tanto fosso entre ricos e pobres, se a pirâmide invertida não servisse só para escrever textos de jornais mas para explicar como se faz e distribui o mundo, talvez nos ocupassemos com outro tipo de destruição do outro, mas não é seguro dizer que não estaríamos a fazer isso mesmo, a destrui-lo. Porque o problema é esta dissidência cósmica de cada um com o universo, e tudo o resto é jogo de penélope escondida com o rabo de fora. Hoje ainda a terra tem recursos para todos e para muitos mais, não é isso que está em causa. O que está em causa é que há um movimento dirigido para o infinito e em que um dia esses recursos se esgotarão. E quando se esgotarem esta dissidência cósmica será o discurso político dominante. Está dentro de nós. Está tão interiorizado no nosso modo de olhar e de ver e de sentir que tivemos também de interiorizar dentro de nós mesmos o discurso da escassez. O discurso da escassez é o discurso do ódio. Porque não há verdadeira escassez. É o ódio que nos instala no medo de que não chegue à nossa vez. Os nossos primeiros interiorizaram-no. Transmitiram-nos isso. Os nossos primeiros antepassados, à luz do que conhecemos hoje, eram riquissimos, poderosos, tinham o mundo todo para eles. Mas se hoje a nossa segurança social, os nossos sistemas fiscais, de saúde, a educação, estão construídos na base do pressuposto terrível da escassez é porque quando isso era perfeitamente desnecessário nos fizeram interiorizar tudo isso. O discurso da escassez é o discurso do ódio. É o discurso da ganância. Faz tão parte do nosso modus vivendi que nem percebemos o quanto é hipócrita à luz dos valores qu apregoamos. É por isso que eu sinto vontade de mandar levar na peida a todos os gajos que explicam superiormente isto. Não há nada a explicar, não há nada de superior nisto. Os nossos tetramilionésimos avós sabiam que daqui a mil anos a Terra iria ser insuficiente para todos. Eu digo daqui a mil anos e há muitos gajos que pegam nos canhestros que explicam superiormente isto e dizem que não é preciso esperar tanto tempo, que esse tempo já chegou. Mas não é verdade. O mundo ainda teria recursos suficientes senão nos tivessemos reproduzido de acordo com o discurso da escassez e do ódio. É entre nós e o cosmos que a coisa se passa. E esse momento ainda tem muitas horas, dias, meses e anos a esperá-lo. Nós não somos o homo sapiens sapiens. Somos o homem ódio, o homem escassez, o homem filho da puta. Nós somos tão modelares nesta interiorização do ódio, que negamos a nós mesmos -ouçam bem, a nós próprios, e cada um por sua vez, eu nego-me a mim, tu negas-te a ti, ele nega-se a si mesmo - o que de mais importante poderia ter esta vida: o amor. Parece absurdo não é? Poderíamos amarmo-nos. Poderíamos até termo-nos reproduzido por termos interiorizado em nós a ideia do amor. Alguém consegue imaginar um mundo assim? O que seria do nosso mundo se todos os gestos da nossa vida dissessem isso àcerca de nós próprios, gajos interiorizados por um amor que explica superiormente isto? E se um dia nos faltasse a água, o petróleo, a comida, o ar que respiramos, aí zangávamo-nos com deus. Mas zangávamo-nos definitivamente. Irreversivelmente. Todos juntos. Não há quem me tire da cabeça esta ideia: o ódio que sentimos uns pelos os outros é a interiorização do grande ódio que sentimos por deus, pelo nosso devir ou destino, chamemos-lhe ou não maldição.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
assim, de um só fôlego, corta-nos o respirar. bonito de morrer.
Obrigado por teres aguentado a torrente. Estava com pena do texto ao pensar que que ninguém o conseguisse ler até ao fim. Obrigado, M.
Li, palavra a palavra, e continuaria ler, palavra a palavra.
Quando se amam as palavras, elas levam-nos até onde tiver que ser.
É só uma questão de tempo.
Enviar um comentário