O 206, nocturno, para além de me transportar para casa a horas escuras, transporta-me a uma morada de Lisboa para a qual nunca estou desperta.
Vários dias por semana, já de madrugada, desço a Rua do Alecrim, sempre apressada e gosto deste caminho, do passeio irregular.
Penso no medo. E não tenho medo.
Todos os dias me foco nessas personagens do 206 e todos os dias escolho uma. Escolho uma e acontece-nos uma história.
Ontem escolhi um senhor de faces rubicundas e olhos pequeninos. Senti-me constrangida quando me baixei para apanhar uma moeda que julguei me ter saltado da carteira. Gracejou “é minha!”. Depois sorriu com um daqueles sorrisos francos. Numa cidade grande cada vez menos temos encontros destes. E eu fico sempre dividida entre sorrir de volta e baixar os olhos, porque afinal é Lisboa, é tão tarde, afinal apanhamos o mesmo autocarro mas onde será que ele vai ter.
Continuei atenta. Parecia um avô, reformado das finanças e um nadinha demente. Reparei que falava. Sozinho. Dizia tudo o que ia pensando. Perdi a maior parte do discurso nos solavancos e roncos do autocarro. Tive pena. “Hoje estou muito cansado.”. “Hoje dói-me mesmo o corpo.”. “Vou chegar a casa, vou pôr os pés de molho e beber leite.”. “Tenho saudades tuas, tenho pois.”.
2 comentários:
De retorno a casa? Bem vinda!
Gosto de voltar a ler as tuas palavras de novo. Acho interessante este teu exercício no autocarro, já dei comigo a fazer o mesmo uma vez por outra no diário vai e vem do metropolitano; são alguma das imagens que ficam de toda a multidão que por nós passa no corre-corre do viver da cidade. Ficam as imagens e as palavras dos contadores de histórias.
todos nos observamos uns aos outros... mas apenas alguns o conseguem descrever como tu.
beijos, betty
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