sábado, março 18, 2006

Alice

Durante tempo não consegui dizer nada sobre o que sentia. Desde que a Alice me deixou que fiquei do avesso no quotidiano a tentar concretizá-la atrás das esquinas da casa, quando se aproximava intempestiva e segura, a preocupar-se com um gato malhado que nunca vi.
Hoje a ouvir a banda sonora de Alice, um filme de Marco Martins uma outra Alice recordou-me a Alice. A que já fui e que serei?
A Alice era eu e não era eu. A Alice morava em mim como o meu futuro. Como a minha vida que vai acontecer. Tornar-me-ei na Alice e sei-o desde que ela me abandonou. Como pode um escritor inventar alguém em quem eu me tornarei? Quer dizer que se somos invenções perpétuas das mãos dos outros, o que somos sozinhos debaixo da lua? Pó? Pó cansado e desdito? Coisa nenhuma de nenhum lugar? Em noites frias, com uma dimensão azul de cidade grande, quando todos os outros já dormem e sonham, as suas frases aguentam-se nos segundos, impossível fugir ao eco. Sou apenas uma vida de pedra dos lugares no sono dormido de todos. Quando acordo ela pergunta-me se o sonho é estranho e se as pessoas dos países por onde andaste te reconhecem como Homem. Ela não acha o sonho estranho. As verdades dela vão-nos vestindo como cascas. “É como se a partir de certa altura as coisas que fazemos parecessem tanto que são escolhas nossas que não podemos fazê-lo de maneira diferente?”. Terei uma vaga ideia da vida então. A Alice vai voltar eu sei. Até sei quando ela vai voltar. Aí serei eu ela e ela eu. E o palco será o mundo. E as janelas como televisões que espreitam o mundo. “Fica bonito quando foge.” O palco. E quando volta. O palco e o amor de Alice.