quarta-feira, março 01, 2006

O meu mundo vai morrer amanhã às seis da tarde

Sai do Capote. E enquanto saio começo a entrar naquela irrealidade que me sobrevém sempre que sou tocado por um rasto de fogo qualquer a que, com alguma bonomia ainda chamo, acto de pensar. Não sei o que me provocou. Provavelmente as roupas de época. O design e os décors. Uma ideia: a de que cada um transporta um pouco do tempo, da geração em que viveu. Para quem se constitui como testemunha, e todos nós que blogamos de alguma forma o fazemos, falar do seu tempo é então o quê? Uma obrigação? Uma pulsão? Uma tendência, uma inclinação? Uma necessidade? Um dever? Que homem é este que fala, que se constitui em discurso na cidade humana? E tão importante como isso: se ele não falar, o que sucede ao mundo que ele transporta, que vive nele. Morre? Pode o homem levantar-se da mesa, caminhar no vazio e abjurar esta toleima, este pretensiosismo de reduzir a experiência ao discurso. Não falo desse homem que não existe, cito-me a mim. Se eu me calar morre no mundo onde eu vivo o azul celeste das tardes da minha infância quando na varanda do nosso prédio na Domingos Machado em Mafra esperávamos que chegasse o Ami 8 azul do meu pai? Desaparecem as histórias com que a minha mãe nos entretinha entre a sirene da FOC e a meio hora que demorava o meu pai a aparecer no cimo da rua? Desaparece aquele cheiro a figos que vinha das figueiras do seminário em frente? O que é que cada um de nós transmite, pelo simples acto de existir, ao meio que o rodeia? Esta doença que é estarmos aqui, propaga-se? Que tempo é o meu? A maior parte das pessoas com quem me dou ou me cruzo têm quase todos dez ou até mesmo vinte anos de diferença. Para mais e para menos. E mesmo que tivessem o mesmo eu acharia sempre uma diferença. Viver nos anos sessenta em Mafra não era o mesmo que viver em Lisboa no mesmo período. Os meus primos eram urbanos, eu sei. Quando nos juntávamos na primeira hora pareciam mágicos. Sabiam de coisas, andavam por sítios que nos enchiam os olhos de espanto. Eu e os meus irmãos. Saberei eu que mundo é esse? Deveria por exemplo falar-vos de que comecei a odiar a guerra diante das primeiras imagens que vi do Vietname, na televisão a preto e branco lá de casa, uns anos antes de nela ver Neil Amstrong? Porque é que isso é importante? E porque mesmo que o seja devo ser eu a contá-lo? Também estava lá o Jorge, o Caetano, o Ferradosa. Eles que o contem. O que é que fica no mundo que eu vivo daquilo que, de entre nós, só eu sei? E o que é que isso interessa? O mundo não morre comigo. O meu mundo que morre comigo será uma infima parte do meu mundo. Os lugares onde vivi ficarão lá. Algumas das pessoas também. Aquele vento, aquela aragem da tarde, eram tão frescas as tardes ao pé do Rio Cego, meu deus. O mundo que eu transporto comigo é uma versão reduzida, liofilizada, do real que me empanturra a alma. Quero o quê? Truman Capote estava-se borrifando para a história do tipo que tinha à sua frente, ele só pensava em vampirizá-lo. É para isso que eu vos escrevo? Para tentar aqui uma forma pífia negociar com a posteridade uma ligação, um link? Tudo isso me parece pouco, tão pouco. As palavras que escrevo são palavras arrancadas ao sentido das coisas ou é sentido das coisas arrancado às coisas, à vida? À primeira vista parece que a escrita não pode secar o mundo, mas depois do primeiro olhar mantêm-se a impressão? O que eu gostava era de que cada um fosse um oráculo do mundo que traz consigo. Mas não somos. Interessa-me saber porque não somos. O silêncio é forte explicação do nosso insucesso na casa das palavras. Vampirizámos o real. Se o mundo fosse mundo, quer dizer, se fosse um lugar para perdurar, cada um só ergueria a voz para explicar o desparecimento do seu mundo. Diria, o meu mundo vai morrer às seis da tarde. E depois calava-se.

1 comentário:

Mónica (em Campanhã) disse...

é inquietante e não sei de nenhuma resposta. apenas que depois dos blogs, tudo mudou no desenho dos nossos mundos.