segunda-feira, maio 29, 2006

A fotografia

Porque está calor, um homem e uma mulher deixam a janela aberta. Para que entre uma aragem. Conhecem-se muito bem mas estão num quarto de hotel. Há combinações plasticamente curiosas que sucedem e todos os olhos a fazerem outras coisas, a repousar ou ler um jornal ou a cumprimentar decotes. É a pensar na improbabilidade de nos encontrarmos com estas imagens que falo sobre esta mulher e este homem. Ele, muito comprido, rodopia uma paralelipípedo cinzento de uma mão para outra. De costas para a janela, fotografa-lhe os pés. Ela com os dedinhos bem abertos, para se parecerem pés de criança. Ouvem-se garagalhadas suaves. E lençóis brancos. Agora foca-lhe um olho. Dá para o perceber, pois está com o aparelho colado às suas bochechas. Ela deita-se de bruços e os cabelos espalham-se no branco. Ele não lhe aponta logo a objectiva. Fica a meio caminho entre o extasiado e o desarmado perante a sacralidade das formas. Fotografa-a como se não fosse mulher sua. Como se fosse um anjo. Da rua, raios de de luz nublada penetram a medo no bréu do quarto. Cá de fora não se distinguem rostos. Entrecortada por tempo muito escuro, apenas luz brota do aparelho, em fracções de segundo encadeantes. A luz de relâmpago toma o quarto todo. Eu, que escrevo, ou o homem que fotografa, tecemos uma elegia aos momentos que se perdem, sem nunca serem vistos ou sequer imaginados. Se os vi podia não os ter visto. Se não os vi podia tê-los visto. Moro mesmo em frente a um hotel.

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