habituo-me à noite, a vê-la morrer. mas sou amadora. que o faço porque a amo e porque a não entendo.
isso traz o dia, o vagar , e os pássaros que passam por nós como pessoas pequenas e pousam debicando migalhas invisíveis esquecidas nas frestas da calçada.
habituei-me à noite profunda, e aos dias que acordam grandes de ruas vazias, e faróis ainda acesos e o cheiro da cidade que não sei explicar se é a chuva, mas parece que se entranha.
há uma cumplicidade entre quem não dorme nunca. eu só às vezes não durmo nunca para investigar. o seu modus operandi.
sábios da ubiquidade.
a cidade que amanhece é um segredo desvendado para esses, que se reconhecem.
e se os que não dormem povoassem os sonhos de quem dorme?
como uma profissão. de fé ou de sobrevivência.
e o cheiro da rua imprevisível a intensa humidade e o cansaço nos ossos, a carne já não importa, a felicidade simples de dar a volta ao relógio duas vezes e ver um bocadinho do mundo por esses olhos.
serão os de Deus?
Deus não dorme, pois não?
3 comentários:
quem não dorme (em serviço) és tu! :)
há um livro fantástico - Diccionário Khazar - que descreve um povo que tinha seitas de caçadores de sonhos: quem dormia sonhava a vida dos que estavam acordados e vice-versa
Sabes, adoro especialmente esta hora a que a cidade acorda e aos poucos se povoa de sons, cheiros, cor e pessoas mas acho que naõ gostava de ver o mundo pelos olhos de Deus, sentiria, por certo, uma responsabilidade que não invejo; é uma hora que continuo a gostar muito de capturar em retinas próprias e quando possivel, fruto da oportunidade, com o obturador da máquina fotográfica.
O que não se captura nem em olhares ou fotogramas é o reino de Morfeu, é interessantíssima essa ideia de povoar sonhos e ocorre-me à laia de similaritude "Quem quer ser John Malkovich?" e uma dúvida: poderia ser isso considerado uma espécie de voyeurismo invulgar, essa ideia de nos vermos em sonhos alheios?
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