domingo, junho 18, 2006

No divâ do "Psi"

[Não costumo publicar aqui textos publicados noutros lugares. Há pouco estava à procura de um determinado material e encontrei, perdido numa pasta de arrumos, este texto escrito em 1996. Achei melhor recuperá-lo. Foi publicado a primeira vez no Vento Novo, Jornal do Concelho de Loures onde, com bastante regularidade e durante cerca de dois anos, mantive uma crónica quinzenal. E sorrio, diante da conclusão final deste texto. ]
" Há alguns tempos uma amiga confessou-me que as consultas do psiquiatra eram uma despesa corrente e habitual de cada mês, tal e qual a renda da casa, a conta do gás ou da luz. Martirizei-a vezes sem conta tentando demovê-la dessa dependência, alertando-a de que não podia fazer disso uma regularidade tão inevitável como o correr dos dias. Incentivei-a mesmo a sair, a dar uma volta, a gastar o dinheiro do "psi" - era com esta abreviatura carinhosa e fugídia que ela o designava- num jantar, num teatro, a beber uns copos, a deixar-se surpreender pela vida e pelas pessoas. É evidente que a proximidade que eu tinha face a esta revelação me prejudicou o discernimento, mas o que está em causa aqui é bem mais grave, e tem a ver com esse grande mal estar com que todos convivemos com os problemas de natureza mental e psicológica, não aceitando nem colocando ao mesmo nível a doença física e psiquíca. Daí que aceitemos com relativa naturalidade que desfuncionamentos do nosso organismo como, por exemplo, enxaquecas ou hipertensão, têm de ter um tratamento médico adequado, mas que dificilmente nos confrontemos com a necessidade de fazer passar pelo mesmo apoio médico alterações e perturbações do comportamento. Será sem dúvida interessante debatermos as razões da estigmatização feita à roda da perturbação e doença mental (e até de toda a doença). Como se usa dizer quando não se quer perder muito tempo com os detalhes, ela resulta de um complexo de razões sócio-culturais que se arrastam no tempo. Embora, no correr deste texto, esteja mais interessado nas possíveis consequências, para uma determinada comunidade, desta estigmatização construída em torno da saúde/doença mental. E a primeira imagem que me ocorre sempre que penso neste problema, é o trabalho em que participei, já lá vão quase dez anos , como assistente do encenador João Silva, encenador do Grupo de Teatro Terapêutico do Júlio de Matos, que construíu um espectáculo, na Associação Comunitária de Saúde Mental, envolvendo pessoas com acompanhamento psiquiátrico e actores universitários. Foi aí que percebi quão ténue é o risco que, inicialmente, separa uma pessoa vulgar daquilo a que vulgarmente chamamos louco, maluco, tolinho, doente mental, doente psiquiátrico, num rol paradigmádicamente quase inesgotável. O modo como muitos deles tinham chegado ao Júlio de Matos era perfeitamente semelhante às inúmeras situações (toxicodependência, alcoolismo, problemas laborais, familiares, conflitos com pais, conflitos conjugais, separações, divórcios, esgotamentos) que todos vivemos no nosso quotidiano, mas que, afortunadamente para nós, nos levaram noutras direcções que não a um hospital psiquiátrico. E digo afortunadamente para nós, porque fácil é entrar no hospital psiquiátrico, díficil é sair de lá sem que o estigma se nos cole à pele, à voz à atitude e nos acompanhe para toda a vida. Ao sairmos é toda uma sociedade doente, perturbada, insegura, que se fecha não permitindo o retorno ao circuito normal . Tenho aliás um exemplo, para mim dramático, desta situação. Trabalhei há muito tempo em teatro com um amigo que, depois de uma overdose, tinha sido levado para o Júlio de Matos. Na altura o meu amigo era menor e os pais pressionaram os médicos para que ele fosse internado. Esteve lá seis meses. Quando regressou era um farrapo humano. O João, vou chamá-lo assim, tinha uma grande sensibilidade, escrevia, queria fazer teatro, queria intervir. O colete de forças invísivel que trazia quando saiu amarfanhavam-lhe os gestos e a liberdade. Nunca mais soube dele, até que há pouco tempo um amigo comum me disse que ele continuava com visitas e por vezes internamentos periódicos, ou seja, mais um doente mental em projecto de construção. Ao longo deste tempo sempre pensei que quem necessitava de acompanhamento eram os pais que conduziram um filho drogado a um internamento psiquiátrico de seis meses. Em primeira instância ainda o penso. Embora já complete o meu pensamento, dizendo que esta sociedade é que precisa de ser tratada, acompanhada, necessitando de ganhar coragem e sentar-se no divâ do psi, na cadeira do grupo terapêutico, encarando com mais naturalidade o tratamento das perturbações do comportamento. A minha percepção é a de um leigo, esclareça-se, nem o facto de escrever numa tribuna pública dá mais representatividade às minhas opiniões. Aliás, só retomo a discussão porque ela é permanentemente actual numa sociedade que gradualmente adquire, individual e colectivamente, consciência da sua perturbação comportamental. O modo como cada um de nós se enfia no ginásio, nas actividades desportivas, a saúde do corpo é a saúde do espírito, dizem os provérbios, nos yogas, nos grupos terapêuticos, nos acompanhamentos psiquiátricos, nos grupos de risco e aventura, ou até mesmo nos prozacs, nos ansióliticos, nas vitaminas e demais revitalizadores, tem a ver com o modo como hoje, talvez influenciados por esta doença contemporânea, o stress, reconhecemos que a saúde de espírito é um problema de todos, individual e colectivamente. Um problema de todos que estravaza o hospital psiquiátrico e invade o nosso espaço-vida de todos os dias. O nosso espaço-vida de todos os dias e a nossa linguagem . É vulgar encontrarmos hoje, nas mesas dos cafés, nos balcões do tudo rápido, até pensar, psiquiatras de bancada discorrendo sobre os conhecidos, dizendo que fulano é neurótico, maníaco depressivo ou esquizofrénico. Também a nível colectivo, das comunidades, houve mudanças na atitude face à saúde/doença mental. A droga, a criminalidade, a exclusão social, a violência urbana, o consumismo, a solidão, o stress, são alguns dos aspectos que alteraram os nossos brandos costumes. A fórmula da estigmatização e da consequente construção de uma redoma que protejesse a vida social já não tem qualquer efeito prático. Se nos detivermos a observar os nossos semelhantes teremos, nos dias de lucidez, a impressão de que o mundo se tornou num enorme hospício . O que podia parecer um juízo depreciativo sobre o nosso universo, um enorme hospício, é afinal, em relação a este aspecto, um rasgado elogio. Porquanto, embora mais conformadora, esta ilusão de que a doença mental está encerrada no hospício enquanto a saúde mental no mundo cresce fora dos seus portões, é totalmente doentia, pelo menos é essa a opinião que o desfiar deste texto tem vindo a defender. Curioso é reparar que enquanto o mundo se torna num hospício, os mais modernos hospitais psiquiátricos tendem a ter uma estrutura mais leve e mundana. É evidente que esta mudança não torna o mundo mais tranquilizador, pelo menos para aqueles que, como nós, nasceram num mundo e o vêm agora transformar-se radicalmente noutro. A minha tese de fim de prosa, e todos os textos têm uma tese escondida com o rabo de fora, é que essa intranquilidade, essa inquietação, é a pedra de toque para que o nosso mundo substitua gradualmente o lema que nos tem governado até aqui, a racionalidade como mãe de todos os desígnios, e que através de um processo, decerto doloroso e angustiante, de irrupções das várias irracionalidades que trazemos trancadas dentro de nós, nos leve a encontrar outra forma de organizar o mundo, onde a racionalidade deixará de ser o princípio e o fim, será o cruzamento e o elemento revelador da nossa totalidade. É por essa possibilidade que eu penso que vivemos numa época tão terrível como terrívelmente interpelativa do nosso projecto de Humanidade.

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