terça-feira, agosto 15, 2006
Nascemos culpados
(Há uns anos enviei para a Zona NON, um texto a que chamei "Nascemos culpados". Desse texto retiro aquilo que me parece poder ter ainda alguma actualidade.)
"
A única força que poderá ainda impedir a devastação que o ataque americano, ou o seu anúncio, veio trazer ao nosso mundo, será a de aceitarmos que morremos com a morte do Outro. Que nos embrutecemos com a sua ignorância. Que perdemos a nossa própria humanidade quando o Outro é despojado da sua dignidade humana.
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Sabemo-lo, é difícil perceber o dilema do nosso mundo com o advento de uma propaganda que desonra o espírito das democracias de que tanto nos ufanamos. Manchando-as com a sua própria incapacidade de compreender o tresloucamento que é levar a ignorância sobre o outro até à sua supressão. É a Besta que convocam, ou, repetindo Séneca, " Muito àvido é da vida quem não aceita morrer quando consigo vai morrer o próprio mundo".
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Todos nós preferíamos que as coisas fossem de outra maneira. Que nunca tivéssemos percebido como é que o progresso da nossa civilização está tão promiscuamente ligado à indignidade do Outro. Mas percebemos. A mentira, mesmo fenecendo de longevidade e velhice, tem perna curta e há um dia, que nem perna tem.
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A Besta não é uma questão de figuração, sim de desfiguração. O problema é que não é o nome - seja ele de Saddam, Bush ou Sharon - que figura a Besta. O problema é que é esta que nos desfigura. Não está em causa aquilo que cada uma destas aberrações políticas é ou não é, a que nem as nossas democracias estão imunes, mas aquilo que veementemente nós próprios não queremos ser, não podemos ser.
Não queremos nem podemos ser cúmplices. Porque não somos inocentes. A retórica da inocência, conjuntamente com a da exaltação da nossa condição democrática, é uma peça decisiva do xadrez da mentira que cobre o Médio Oriente. Sabemos, com uma dor que sempre adiámos, que os nossos gestos mais triviais e quotidianos, aqueles que quase ousamos pensar que são imprescindíveis, estão manchados e etiquetados por uma usura que sempre desvalorizámos.
E é esse, entre a arrogância da inocência e o reconhecimento, doloroso, da nossa responsabilidade, o exacto dilema que nos separa."
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3 comentários:
"Sabemos,..., que os nossos gestos mais triviais e quotidianos, ..., estão manchados e etiquetados por uma usura que sempre desvalorizámos."
o pecado original?
tu o saberás Carlos, eu não lhe encontro originalidade nenhuma. e não é um pecado. afastemos a religião disto tudo, só confunde. será muito mais próximo de um pecadilho das sociedades capitalistas ou, como se diz hoje, de mercado. eu prefiro, neste caso, dizer, capitalistas. faz-nos lembrar Marx e Marx, principalmente depois do advento dos irmãos homónimos o terem libertado da rigidez da doutrina, ainda nos ajuda a perceber alguma coisa sobre a exploração do homem pelo homem.
eu só trouxe a religião por encontrar smelhanças na ideia, mas sim só confunde.
original de origem, não de originalidade.
se quiseres, não um pecado, mas "marca",... caracter de nascença.
Do que se trata, penso, é do Homem, de como ele é e como gostava de ser.
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