terça-feira, setembro 12, 2006

Registo de Propriedade

É uma história tão antiga que já nem me lembraria dela se não fosse a escrita, neste seu afâ contra a amnésia, tê-lo voltado a colocá-la em cima da mesa do jantar. Ela dizia-me, sou tua. E eu respondia-lhe, sou teu. Trocávamos identidades tal como antes trocaramos cromos dos bonecos da bola, as letras manuscritas das canções dos Beatles ou os livros da colecção Ver & Saber, ou como anos depois, no jacarandá daquela casa do Norte, trocámos de corpos, de suores, de estremecimentos.
Sou tua, dizia.
Sou teu, respondia. Não é uma história perfeita, como o nunca são as histórias que dão nisto. Um dia percebemos que a posse despudorada do outro nos doía o espirito. Um bocadinho num dia, outro no outro dia, mais um pouco no dia seguinte. Um dia acordarámos e tudo aquilo que fora terra e horizonte a perder de vista mirrara, definhara. Era dor. Uma dor superlativa. Desde essa altura que nunca mais peço a posse a ninguém. Gosto de a dizer mesmo sabendo que não é verdadeira, eu só posso dar o que é meu e a minha vida não é minha. Talvez seja um dia, no momento da minha morte. Talvez venha a perceber nessa altura que a vida, este aluguer de longa duração, é um trajecto de um a apoderar-se de si próprio. A possuir-se. De rasgos, de vontades, de sentidos e sensibilidades.
Por agora ainda isso não é evidente. Por agora ando com esta ideia de que a posse trai-nos. Sabe bem em alguns momentos sentir a vertigem da perda da popriedade que a cada um está atribuída, é gozo superior entregarmo-nos a outra pessoa, mas tudo isso existe ainda e apenas no reino da manifestação.

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