"Um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri di-lo-á decerto com pena mas sem o alívio que eu próprio decerto senti primeiro ao solucionar de vez esse problema de respiração que a vida é desde a convulsão da criança que a meio do copo deixou ir leite para a traqueia até a instantânea atrapalhação do mergulhador a quem de súbito falta o ar comprimido só dispõe da reserva e lhe faltava tanto que ver no fundo sonhador do mar depois senti alívio porque às vezes a meio por exemplo da aragem na face eu pensava na morte como problema metafísico a resolver pelo menos com higiene se não com dignidade com acerto como mais um problema à medida do homem Eu estava do lado dos vivos estou do lado dos mortos o grande problema era saber se me doía ou se não me doía agora nem sei se me doeu ou não ou fui um mero espectáculo de mau gosto para a única pessoa encarregada de me ajudar nesse momento Ninguém a princípio terá sabido que eu morrera só minha mulher avisada de longe virá e me porá a mão sobre a testa os demais não disponho do olhar para me defender o tempo depressa se passa são trâmites legais até me terem deixado debaixo do chão bem debaixo do chão sem frases lidas ou gravadas sem sentimento nenhum Uns dias depois um pequeno grupo junto a uma grande janela olhará a neblina da manhã de janeiro e terá mãos que eu tive para os meus problemas de vivos Onde eu estive sobre uma mesa com uma perna cruzada suaves começarão a suceder-se e acumular-se os dias como cartas revistas linguísticas ou livros adormecidos despertos apenas no momento fugaz da leitura A vida será indistinta virá até nós como árvores rodará em volta como um lençol até cobrir-nos os ombros Falareis de mim não posso impedir que faleis de mim mas já nada disso me pesa como o simples facto de ter de ser vosso amigo Estou só e só para sempre e só desde sempre mas antes por direito de opção. Agora não Deixaram-me aqui doutor em tantas e tão grandes tristezas portuguesas e durmo o sono das coisas convivo com minerais preparo a minha juventude definitiva Era como eu esperava mas não posso dizer-vos nada pois tendes ainda o problema e a cara da pessoa viva." Ruy Belo Poema Inédito sem Título Por vontade própria, a Celta. Éramos três, hoje, um pequeno grupo, a olhar uma grande janela. O rio que comummente partilhamos. Não praguejámos. Haveríamos de o fazer mais tarde. Naquele momento não. Saboreámos o chá de menta. O sol a cair a pique na água. É uma forma de praguejar como outra qualquer.
domingo, novembro 26, 2006
Por vontade própria
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
A dor da partida só é confortada com uma certeza dum reencontro... a perda de alguém que nos é querido não tem cura possível..tem alívio nunca cura.A cicatriz da perda fica mas felizmente fica também a cicatriz da sua passagem pela nossa vida.Força.
Um Abraço sentido...
Vivemos a contar a história de quem gostamos, a prolongar-lhes aí a vida, e tu JPN, és nisso insuperável. Um abraço
Enviar um comentário