domingo, novembro 26, 2006

Por vontade própria

"Um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri
di-lo-á decerto com pena mas sem o alívio que eu próprio decerto
senti
primeiro ao solucionar de vez esse problema de respiração que a vida
é
desde a convulsão da criança que a meio do copo deixou ir leite para
a traqueia
até a instantânea atrapalhação do mergulhador a quem de súbito falta
o ar comprimido
só dispõe da reserva e lhe faltava tanto que ver no fundo sonhador
do mar
depois senti alívio porque às vezes a meio por exemplo da aragem na
face
eu pensava na morte como problema metafísico a resolver pelo menos
com higiene
se não com dignidade com acerto como mais um problema à medida
do homem
Eu estava do lado dos vivos estou do lado dos mortos
o grande problema era saber se me doía ou se não me doía
agora nem sei se me doeu ou não ou fui um mero espectáculo de mau
gosto
para a única pessoa encarregada de me ajudar nesse momento
Ninguém a princípio terá sabido que eu morrera só minha
mulher avisada de longe virá e me porá a mão sobre a testa
os demais não disponho do olhar para me defender
o tempo depressa se passa são trâmites legais até me terem deixado
debaixo do chão bem debaixo do chão sem frases lidas
ou gravadas sem sentimento nenhum
Uns dias depois um pequeno grupo junto a uma grande janela
olhará a neblina da manhã de janeiro
e terá mãos que eu tive para os meus problemas de vivos
Onde eu estive sobre uma mesa com uma perna cruzada
suaves começarão a suceder-se e acumular-se os dias
como cartas revistas linguísticas ou livros adormecidos
despertos apenas no momento fugaz da leitura
A vida será indistinta virá até nós como árvores
rodará em volta como um lençol até cobrir-nos os ombros
Falareis de mim não posso impedir que faleis de mim
mas já nada disso me pesa como o simples facto de ter de ser vosso
amigo
Estou só e só para sempre e só desde sempre
mas antes por direito de opção. Agora não
Deixaram-me aqui doutor em tantas e tão grandes tristezas portuguesas
e durmo o sono das coisas convivo com minerais preparo a minha
juventude definitiva
Era como eu esperava mas não posso dizer-vos nada
pois tendes ainda o problema e a cara da pessoa viva."
Ruy Belo
Poema Inédito sem Título
Por vontade própria, a Celta.
Éramos três, hoje, um pequeno grupo, a olhar uma grande janela. O rio que comummente partilhamos. Não praguejámos. Haveríamos de o fazer mais tarde. Naquele momento não. Saboreámos o chá de menta. O sol a cair a pique na água. É uma forma de praguejar como outra qualquer.

3 comentários:

Anónimo disse...

A dor da partida só é confortada com uma certeza dum reencontro... a perda de alguém que nos é querido não tem cura possível..tem alívio nunca cura.A cicatriz da perda fica mas felizmente fica também a cicatriz da sua passagem pela nossa vida.Força.

Anónimo disse...

Um Abraço sentido...

apicultor disse...

Vivemos a contar a história de quem gostamos, a prolongar-lhes aí a vida, e tu JPN, és nisso insuperável. Um abraço